"Cada morte de uma criança enfatiza o mistério ao qual estamos mergulhados, e que não é silencioso: ele fala alto" (Lya Luft)Conta uma antiga história que um velho imperador pai de muitos filhos e avó de muitos netos sofria todos os dias de um medo terrível frente à possibilidade de perder essas pessoas que lhe eram tão preciosas. Ele tenta se valer de toda sua influência e poder para conseguir fórmulas e procedimentos que garantissem aos seus filhos e netos vida longa e a felicidade que ele tanto desejava.
Certo dia, um velho sábio deixa no livro sagrado do imperador, as seguintes palavras '"os avós, morrem, os pais morrem e os filhos morrem". Ao ler tais desejos, o imperador tomou-os como maldição e enfurecido pediu que o velho se explicasse sob pena de ser preso. Diante da exigência do imperador , o sábio respondeu:
- Majestade, eu não sei receitas para impedir a morte. Ela virá de qualquer forma, o que eu posso desejar é que ela venha na ordem natural. Desejo que vossa majestade morra antes que seus filhos e que estes morram antes de seus netos, por isso invoquei a morte na ordem da felicidade: "os avós morrem, os filhos morrem, os netos morrem". Assim como o imperador da história acima, sempre esperamos que os acontecimentos sigam um curso natural. Insistimos em ignorar a consciência da finitude da vida, embora faça parte de nosso acervo de conhecimentos e só a encaramos quando bate em nossa porta.
A perda de um ente querido por morte produz um longo e árduo trabalho de luto que na definição de Mazorra (2001,p.1) "... é um processo de reconstrução, de reorganização diante da morte, desafio emocional e cognitivo com o qual o sujeito tem que lidar" . Se não bastassem todas essas tarefas, um agravante a mais se impõe quando morre uma criança. Nós, que acompanhamos famílias enlutadas, sabemos quanto esse fato é desorganizador e produz ceticismo, revolta e muita raiva. Quem disse que luto é só tristeza? Sentimentos que podem se alastrar nos familiares que perdem uma criança são a raiva e a incompreensão por um processo de inversão da natureza. Mesmo sabendo que a morte é inevitável esperamos sempre que os mais velhos morram primeiro. É muito comum que os pais que enterram seus filhos jovens, levem um tempo longo para se conformarem com a perda tão precoce.
Tudo parece escapar da nossa compreensão e do nosso controle, quando vimos a morte prematura, e muitas vezes violenta, de uma criança. Uma reviravolta surge em todas as certezas humanas, produzindo ruídos e dores dilacerantes. Nós, que trabalhamos direta ou indiretamente com a morte, não estamos imunes a este sofrimento diante da morte de crianças e jovens. A idade ou o tipo de morte é sempre uma variável de reflexão e ensinamento muito particular.
Na nossa condição humana de "ser" há um discurso implícito que nos rodeia com muitas fantasias de que crianças e jovens são eternos, simbolizam a vida, o começo, os sonhos, o futuro. Quando somos colocados na exata dimensão de nossa existência - a finitude - nos deparamos com uma verdade tensa e escorregadia.
Em nossos cursos para equipes de cemitérios e funerárias, ouvimos com freqüência depoimentos acerca do sentimento de angústia e sofrimento dos sepultadores e agentes funerários quando têm que lidar com um corpo infantil. Como Lya Luft escreveu recentemente em um artigo para Revista VEJA, trata-se de uma tarefa difícil que produz um "zoom" nos mistérios nos quais estamos mergulhados e fala muito alto em nossos ouvidos.
Como cuidadores dos corpos, dos sepultamentos e das famílias enlutadas, precisamos aprender a usar nossos sentimentos diante das adversidades a que somos expostos no trabalho com a finalidade de torná-los nossos parceiros em um atendimento sempre ético, empático e humanizado. Sensibilizados diante de uma família em sofrimento por uma morte de criança ou jovem, devemos nos empenhar ao máximo para criar boas condições de luto para esta família.
O que são boas condições de luto, afinal, para alguém que teve uma perda tão dolorida? O que chamamos de boas condições de luto é um leque de ações da equipe de cemitério e funerária, bem estruturadas, delicadas e assertivas, desde o manejo do corpo até os trâmites administrativos. Quando um atendimento é demorado, indelicado ou pouco preciso, ele sobrecarrega a família com problemas que ela não precisaria viver e não cria boas condições de luto. Assim, as condições que favorecem um bom luto são aquelas nas quais permitimos que a família tenha que lidar apenas com a sua dor pela perda e não sobrecarregá-la com outros problemas provocados por um atendimento de má qualidade.
Além de usarmos nossos sentimentos em favor de um atendimento com excelência, podemos usá-los também a nosso favor. De que forma?
Enfatizamos com freqüência, em nossos treinamentos, o privilégio que temos por trabalhar diante da morte cotidianamente, pois ela nos faz pensar a vida. Embora tenhamos todos os dias doses homeopáticas de sofrimento humano, retornamos para nossas famílias e amigos certos da fragilidade da vida e portanto sedentos de aproveitar cada minuto com as pessoas que amamos.
Sinta-se "estranhamente especial" por trabalhar com a morte, mesmo que as pessoas te digam o contrário.
Fonte: Ana Lúcia Naletto e Lélia de Cássia Faleiros Oliveira são psicólogas clínicas do centro de Psicologia Maiêutica, especializadas no trabalho com enlutados e desenvolvem projetos de apoio à família em luto e cursos para equipes de cemitérios, crematórios e funerárias. www.centromaieutica.com.br