No texto anterior tecemos uma reflexão sobre as possíveis razões para o crescimento do número de crematórios no Brasil, destacando os aspectos religiosos, ambientais, psicológicos e financeiros.
Neste texto, discutiremos sobre os fatores que motivam a família optar pela cremação diante da morte de um ente querido e a relação que estabelecem com as cinzas. As contribuições e os resultados aqui socializados estão baseados em nossa experiência com famílias enlutadas e em um estudo qualitativo realizado recentemente1, no qual entrevistamos famílias que fizeram a opção de cremar.
O Último Presente para o Falecido Sem sombra de dúvida, para a família a maior motivação para a cremação é a escolha feita pelo próprio morto, anunciada em vida, geralmente de uma forma incisiva, mas num momento descontraído. A pesquisa que realizamos mostra que 75% das famílias entrevistadas, respeitaram o desejo do falecido e providenciaram a cremação.
Do ponto de vista psicológico, atender a um desejo do falecido seria uma última forma de presentear-lhe, de lhe agradar. Por esta razão, vemos que os pedidos das pessoas falecidas sempre crescem em importância e valor para aqueles que ficam. Contrariar um desejo do morto, ou mesmo ressaltar seus defeitos logo após a morte costuma ser entendido pela psique como um ataque à pessoa falecido e isso gera muita culpa, por isso é tão comum que os mortos sejam bem falados e tenham seus desejos realizados.
Mas se 75% optou pela cremação em respeito ao ente querido, o que motivou os 25% restante ? Outro fator, apontado para a escolha da cremação, responsável pelos 25% restante, foi o fato de esta prática permitir que a família se mantenha próxima do falecido, por meio das cinzas. Uma das entrevistadas relata que cremou o corpo da filha para trazê-la para o jardim de sua chácara, uma vez que não queria deixá-la enterrada num cemitério distante de sua casa e com ambiente “frio e pouco familiar”.
Na ausência da pessoa falecida, os objetos pessoais do mesmo ganham grande significado porque são vistos como uma forma que os familiares encontram de estarem perto da pessoa que perderam. Assim também é a relação com o corpo morto, seja enterrado, seja em cinzas. O corpo é o que restou do falecido e por isso é tão imbuído de significado afetivo.
A Relação da Familia com as Cinzas Se por um lado, vimos à aceitação da família pelo pedido feito para a cremação, por outro temos observado que muitas delas não retornam para retirar as cinzas de seus entes queridos no crematório, e isso normalmente é interpretado pelos funcionários como descaso para com o falecido. É preciso certo cuidado nessa análise para não fazer mau juízo das famílias e para não fazer uma interpretação generalizada e errônea do fato.
Como vimos, na maioria das vezes a família opta pela cremação para agradar ao falecido, mas isso não quer dizer que a família esteja preparada para lidar com a cremação, incluindo a retirada das cinzas. O contato com as cinzas sempre vai colocar a família diante da perda e do sofrimento ocasionado por ela. Contudo, algumas famílias conseguem lidar com a tristeza, agindo sobre ela, fazendo um memorial, lembrando do falecido, deixando-o por perto, etc. Outras, no entanto, sentem mais dificuldade em lidar com o sofrimento e por isso buscam formas de evitá-lo a qualquer custo. Não buscar as cinzas é uma das formas de evitar o contato com a perda e conseqüente sofrimento.
O fato de deixar as cinzas no crematório não se trata de descaso da família, mas na maior parte das vezes, revela um despreparo para lidar com a cremação e a dor da perda. Assim como têm famílias que vão visitar seus entes queridos no cemitério, há outras que não aparecem nunca mais depois do sepultamento e também podem revelar nesta atitude, além de convicções religiosas, uma forma de evitação da dor da perda.
O Destino Dado às CinzasAqueles que vão buscar a urna com as cinzas, podem sofrer com a dúvida sobre o destino que darão à ela.
Escolher o que fazer com as cinzas não é uma tarefa tão fácil para os familiares primeiro porque eles podem divergir entre si e isso se torna um impedimento.
Veja a situação abaixo:
Filho 1: “Acho que devemos jogar as cinzas da mamãe no mar.”
Filho 2: “Nunca!! Ela nem gostava de mar. Vamos misturar na terra e colocá-la no jardim.”
Filho 1: “Claro que não faremos isso, pois ela pediu para ser cremada justamente para não ser enterrada e nós vamos colocá-la na terra?”
Encontrar um destino que agrade a todos será uma tarefa difícil para algumas famílias, mas quando encontrado sempre carregará um significado especial e se traduzirá mais uma vez em tentar agradar o falecido, presenteando-lhe.
A iniciativa de alguns crematórios em criar um local para espargimento das cinzas e um local para guardá-las sem espargir (columbário) pode ser de grande ajuda tanto para a família que busca as cinzas, como para aquela que prefere evitar o contato.
O mais importante é compreender que não são as “promoções”, nem a praticidade que motiva a família a cremar, mas são fatores de ordem psicológica que atuam nesta hora. Obviamente, por traz destes fatores está também o fator religioso agindo com grande força, mas em geral as religiões não determinam a cremação, algumas delas as aceitam como uma opção, podendo a família atender ao desejo do falecido.
No próximo texto trataremos dos motivos que levaram o falecido fazer a escolha pela cremação a anunciá-la para a família. Continuem acompanhando!
Fonte: Ana Lúcia Naletto e Lélia de Cássia Faleiros são psicólogas do Centro Maiêutica e desenvolvem trabalhos na área de apoio ao luto em cemitérios, crematórios e funerárias.
www.centromaieutica.com.br1 NALETTO, A.L.(2008) CREMAÇÃO: UM OLHAR SOBRE ESTA ESCOLHA E SUA RELAÇÃO COM O ESTUDO DO LUTO