Usuário:

Senha:


Esqueci a Senha!    
Cadastrar-se    



 

   Afinal, Quem é Você?

Como seria uma vida sem espelhos? Sem registros de nossa própria aparência? Sem imagens, desenhos ou fotografi as de nós mesmos? Sem que soubéssemos o contorno do nosso perfil, a proporção da boca diante das sobrancelhas e nariz? O comprimento das orelhas, a coloração dos olhos? Veríamos todo o mundo, mas não nos veríamos.

O que seríamos, sem nos vermos?

Ou, pelo contrário: como seria uma vida cheia de espelhos? Se só pudéssemos ver nossa face em todas as outras faces? Muitos e muitos registros de nós, da nossa expressão? Tudo que olhássemos seria mudado por nosso modo de ver a vida, pelo jeito de falarmos, pelo jeito de ouvirmos? Não veríamos o mundo, apenas a nós mesmos.

O que seríamos, só nos enxergando e mais nada?

As hipóteses acima não são apenas suposições delirantes e distantes, como parecem. Elas representam realidades concretas do nosso universo. Relembre, você já pode ter agido assim (eu admito que já o fiz, e faço). No primeiro caso, como e quando isso se daria? Nas vezes em que mal nos enxergamos, ou pouco nos conhecemos para delimitar com certeza nossos reais dons e vontades. Fases sem nitidez, clareza, quando as obrigações cotidianas parecem tomar conta de tudo... Na outra banda, há momentos em que só enxergamos o mundo – e nossas relações nele – conforme o que queremos, e distorcemos tudo a nosso bel-prazer. A realidade que se adapte!

Situações opostas, verdade, e nem sempre freqüentes, mas que mostram uma ínfima parte do imenso universo que forma a personalidade de cada um. Nela, essência, heranças, aspirações, desejos e sonhos se misturam a relações, máscaras, responsabilidades, dores, alegrias... No meio dessa salada completa do tamanho do (seu) mundo, está a resposta para a pergunta da reportagem que você irá ler nas próximas páginas. Uma pergunta que também ultrapassa toda e qualquer letra impressa.

Quem somos nós, afinal?

Genética de bamba!

Sem sombra de dúvida, ao chorar o bebê recebe tudo de que precisa. Leite quentinho, troca de roupa, balanço do chocalho, atenção, abrigo, amor. Basta chorar, ou pedir, e voilá, lá vem mamãe ou papai atender as necessidades. Aos poucos, inevitavelmente, esse cenário muda. O bebê se torna uma criança e começa a participar daquela outra vida além do berço, o mundo dos adultos. Tem hora para comer, para dormir, para brincar, para deixar de usar fraldas. Além disso, ela passa a reproduzir o que vê, o que ouve, o que compreende e apreende da vida familiar. Copia tudo, mesmo porque seus genes a ajudam nessa tarefa. Explicação: por muito tempo se definiu que a personalidade nascia na infância, nos primeiros sete anos de vida. Mas estudos recentes, de algo conhecido como genética comportamental, afirmam que desde o momento em que seus cromossomos X e Y determinam seu sexo, seu lindo olhar e seu jeito de gingar, eles também influenciam as características do seu “perfil de personalidade”, como relata o psicólogo americano Steven Pinker no livro Tábula Rasa. Bom humor seria hereditário, assim como ouvido musical ou aquela inclinação à leitura. Mas não é só isso, claro.

Somada aos genes, é nessa convivência familiar e na necessidade de interação que a personalidade embrionária dá seus primeiros passos. “Suco”, a criança diz, e às vezes trazem suco, às vezes não. Por que, ora bolas, só às vezes? E se gritar, vem? E se chorar? E se sorrir, ou beijar, ou abraçar? A criança testa os caminhos, percebe que alguns não funcionam. Até que compreende como fazer pontes com a realidade exterior – e como pedir um suco, uma bola e, incrível, que seu pai brinque com ela mesmo com aquela cara de cansado. Em outros momentos, a criança não entende nada, se assusta, fica com medo – e cria proteções, barreiras contra o mundo. Por que não podia rir alto naquela casa grande chamada de igreja? Por que ficar de castigo por subir na mesa e se pendurar no lustre? “Nesses momentos difíceis de relação com o mundo, montamos defesas para proteger e esconder as emoções. Nascem nossas máscaras”, diz a psicóloga e terapeuta corporal Maria das Graças Casarsa, especializada em Core Energetics, terapia focada em dissolver bloqueios emocionais utilizando o corpo como instrumento de diagnóstico.

Armadilhas internas

Mesmo com essa característica protetora, as máscaras são funcionais e nos ajudam a estabelecer formas de comunicação. Com elas, vestimos inúmeros códigos sociais. Nos adaptamos às regras de comportamento do ônibus escolar, do trânsito estafante, do vôo intercontinental. Registramos nossa identidade, usamos carteira com documentos, pagamos as contas (quase) em dia, conversamos com clientes, vendemos nosso peixe, enviamos e-mails, paqueramos, amamos, brigamos. “A personalidade com máscaras não tem um caráter negativo, pois essa estrutura apresenta o indivíduo, com seus dons e suas aspirações, ao ambiente social”, explica Elizabeth Zimmermann, presidente da Associação Junguiana do Brasil.

Mas no quesito “quem somos nós?” é preciso dizer que esses instrumentos da persona têm sua contra-indicação. Seriam um pouco intrometidos e surgiriam mesmo quando não fossem convidados para a cena. Para completar, durariam por toda a vida. Quer um exemplo? Esse é clássico. Lá está você levando aquela bronca da(o) esposa(o), mesmo quando você é que está com a razão. Em vez de retrucar, dialogar, debater, se encolhe, assustado, pois foi assim que você se safou quando levava um pito de igual porte da(o) sua (seu) mãe (pai), nos idos da infância. A máscara já não é mais útil, mas aparece mesmo assim. Imagine que isso aconteça muitas e muitas vezes, até o ponto – seja na idade que for – em que você cria uma imensa máscara, para tudo e para todos. Antes de qualquer agressão, melhor se defender, não? Ficar em uma bolha emocional, auto-isolante das fortes emoções do mundo. E incapaz de mostrar a si mesmo, tão automatizado que estaria. Como os peixes que são vendidos em feiras, nadando presos em sacos plásticos com água. E agora? É isso? Isolado e acabou? Talvez seja melhor abrir a couraça, não? “Quando começamos a sentir as amarras que algumas máscaras trazem, começa o processo de reconstrução de sua personalidade, de uma forma mais aberta às emoções. E começamos a expressar a nós mesmos de forma mais verdadeira”, diz Maria das Graças Casarsa.

Espelho, espelho meu

Mas como descobrimos essas tais amarras? Existe algum tipo de manual para achar nossas travas, nossos escudos? Na fala de todos os especialistas consultados, as dicas são simples. De certa forma, o espelho vai nos ajudar. A princípio, deixe de lado o que está no banheiro e use um tirado da sua imaginação. Quando não se sentir bem e sua relação consigo mesmo não estiver tão boa, reveja suas atitudes, como se estivesse vendo um filme. Como naquele dia em que, digamos, você queria tanto ter terminado o relatório, mas foi protelando o trabalho até ser tarde demais para fazê-lo durante o expediente. Levou o trabalho para casa, mas no meio do caminho encontrou uns amigos, parou e resolveu deixar para o outro dia, antes da primeira hora. Então a noite dá lugar a uma nova manhã, mas a cama estava daquele jeito, no ponto, e nada de você levantar cedo. Começa o expediente, e lá vai você duplamente atrasado inventar para a chefia que teve um problema em casa, mas que logo termina tudo. Nesse exemplo trivial, a máscara está nas mentiras que você mesmo se prega. E nas desculpas esfarrapadas que inventa para si e para os outros sobre seu desempenho profissional.

E, em se tratando dos outros, pode acreditar que suas relações podem ser de extrema valia para você se enxergar melhor. Sem exageros ou mansidão. Se todo mundo fala que você é organizado, talvez valha a pena dar crédito a isso. Você pode ser, sim, dessa forma. Mas a questão maior que envolve as máscaras é se você é organizado para os outros verem e falarem disso e você abrir sua cauda de pavão, ou se você é organizado de verdade. Aliás, tudo que faz parte do seu universo exterior vai, de um jeito ou de outro, refletir uma parte de você. No outro extremo das suposições, o carro bagunçado e sujo pode ter múltiplos significados. Um, você está sem dinheiro e tempo para lavar a máquina. Pronto, sem drama. Dois, você não liga para sujeira e é bagunçado por natureza. Ok, tudo certo. Três, você entra em crise com aquela bagunça, que parece dizer que toda sua vida está uma zoeira. Existem mais opções, claro. Anote a sua. E, quando possível, bata um papo com alguém que possa ouvi-lo com um pouco de isenção. Para mim, um diálogo desse tipo aconteceu de surpresa, mas foi importantíssimo. Conto no próximo parágrafo.

Em análise

Já passa de 12 anos que Marcelo conversa, sem parar, com pessoas de todos os tipos. Faz parte da sua rotina, e além de tudo é algo que lhe dá prazer. Escuta com paciência, anota os trechos mais importantes, espera a deixa correta e fala. Muito, por sinal. Sempre com o mesmo tom de voz, com olhar de amigo, gesticulando de forma animada. Afinal, ele é médico e está lá com os ouvidos atentos e a verve inspirada para ajudar, cuidar. Precisa ser franco o tempo todo, e assim o é com apenas uma exceção. Um assunto que ele menciona para poucos (“porque poucos entendem”, como ele diz), mas que percebe em todos: as pessoas se apegam às suas próprias aflições. E olhe que ele não está falando de doenças ou sintomas físicos, mas de um modo de viver a vida em desarmonia e criar repetidas vezes problemas e inquietudes. Foi isso que ele me mostrou, sobre mim mesmo. Estava lá na minha ficha, pude conferir, estupefato. Após oito anos de consultas, retornos, abandonos, freqüências e tratamentos, eu voltava ao consultório para repetir as queixas. Uma dor aqui, outra acolá, todas causadas pelo mesmo jeito de viver. Pelo jeito que criei ou, até, pelo jeito que eu sou – e isso é difícil de admitir.

Ao olhar suas anotações, cheias de frases que pontuaram minhas consultas, percebi que não havia remédio que pudesse melhorar minhas dores, a não ser eu mesmo. Mas por quais motivos criara um modus vivendi que me trazia preocupações, dores, ansiedade? Isso veio ao encontro de muitas leituras que fiz para esta reportagem, e a resposta me atingiu em cheio, dando nó nas entranhas. “Todos temos uma propensão a nos auto-enganar. Ela reside na capacidade que temos de sentir e de acreditar de boa-fé que somos o que não somos”, diz Eduardo Gianetti em Auto-engano. Ou, em outras palavras, podemos muitas vezes buscar mudanças e até o autoconhecimento, sem nunca arredar pé da estaca zero. Conhecer a si mesmo exigiria um pouco de isenção, para não dizer humildade, para ver nossos defeitos. E depois muita vontade para mudá-los. “Vontade para viver bem”, como disse o médico Marcelo Jovchelevich. Nesse momento, lembrei-me da teoria de uma pessoa que considero de bem com a vida, o precursor da ioga no Brasil, professor Hermógenes, que inventou o termo “egoesclerose”. Dessa forma ele classifica como “iludidas” as pessoas que se vêem muito acima do que são.

E isso é preciso ser dito, caro leitor. Se você vai pesquisar a si mesmo, pode ser que se dê conta de comportamentos e vícios emocionais que não lhe agradem. Eu com certeza não gostei de muitos insights que tive durante a pesquisa desse assunto. Tanta coisa nada bacana em mim, bem diferente do que eu projetava no espelho, do que via de cima do pedestal. A boa nova lhe falo pessoalmente, sem recorrer a experts: tropeçar nesses entraves me trouxe mais para o chão, e a vida ficou mais real. Com muito mais poesia e sabedoria, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) deixou registrado, em seu clássico Além do Bem e do Mal, um consolo para esses momentos de descoberta: “Quando a alma jovem, martirizada por puras desilusões, finalmente se volta desconfiada sobre si mesma (...), como se enraivece então, como se vinga por sua demorada auto-obcecação, com se ela tivesse sido uma cegueira voluntária! (...) Nessa transição (...) compreendemos que tudo isso era ainda juventude!” Ou seja, muita calma nessa hora! A palavra maturidade, não importa o número de velinhas que sopre em seu aniversário, ajuda na exploração interior. “Identificar quais emoções tentamos esconder por trás das máscaras, como vergonha, medo, orgulho, é o primeiro passo”, diz Maria das Graças. “Quando descobrir algo, trabalhe a questão sem pressa. Não se trata de passar de ano, é seu processo de reforma, de encontro. Faça no seu ritmo”, orienta a psicóloga.

Encruzilhadas

Sem tanta parcimônia, algumas defesas que temos simplesmente evaporam após intensas experiências que não nos deixam opções, a não ser sentir “pra valer” a vida. Como nos emblemáticos ritos de passagem – o nascimento, o casamento, a morte, o renascimento –, cheios de vivências tão transformadoras. Não era exatamente o que Tiche Vianna buscava, mas para ela o gravíssimo acidente de carro que sofreu dez anos atrás trouxe um incrível renascimento. A morte rondou sua vida, e por um tempo ela “quase não retornou” do longo coma. Quando acordou, veio resoluta: para continuar a viver, faria de cada instante uma experiência urgente e imprescindível. “Eu simplesmente não tive escolha. Fui obrigada a aumentar a intensidade do que vivia, ou estaria morta”, diz. Nesse novo batismo, ela pôde enfrentar inúmeras barreiras internas – principalmente porque ela é bastante familiarizada com o tema. Tiche ensina a seus alunos da companhia de teatro Barracão, em Campinas, como desenvolver suas próprias máscaras. Até por saber bem como foi difícil remover algumas barricadas emocionais, Tiche faz questão de se manter inquieta, sem se acomodar. “O mais importante para mim foi reconhecer os passos que dei na vida, assim como os que não tive coragem de dar. Com isso, aprendi que sem riscos não há vida.”

Outro inquieto com quem pude conversar foi Federico Marmori, um italiano simpático que nasceu em Roma, tem casa em Paris e faz doutorado na China. Prefere comer pouco, mas sua família não vê sentido nisso. A cada visita que faz a seus tios passa, praticamente, todo seu tempo com eles à mesa, seja por um dia, um fim de semana ou mais. Pão, vinho e saladas em demasia não o impedem de ser submetido a um ou dois pratos (enormes) de pasta fumegante, com muito molho, em cada uma das refeições. Federico não se importa, chega a ser um momento nostálgico para ele, que mudou todos os hábitos familiares em nome de uma saúde equilibrada. Tudo começou em uma viagem que fez ao Nepal, quando tinha 18 anos (hoje ultrapassa os 50, sem definir em quanto). “Foram meses e meses andando por estradas lamacentas, experimentando provações. Para conseguir comida e abrigo, me comunicava através de sinais. Muitas vezes dormi ao relento, observando as estrelas, e a solidão sem fim daquela jornada mudou minha vida completamente”, conta.

Até hoje, quando começa a falar de experiências de vida, Federico sempre cita essa viagem – feita há mais de 30 anos. E complementa: “Um dia, faço de novo. Foi ali que descobri quem eu era, adquiri os hábitos que me norteiam e decidi estudar plantas medicinais”. Através de uma simples escolha – realizar uma longa viagem –, Federico traçou um novo molde para sua vida, diferente do que recebera na educação paterna, e que se mantém firme e forte, apesar dos apelos. Que não vêm só da família, diga-se de passagem. Influências e sugestões recebemos de todos os lados, da mídia e da indústria da propaganda. Existem muitas propostas de alienação, que passam pelas roupas que precisamos vestir para estar na moda e chegam aos restaurantes a que precisamos ir para sermos vistos e comentados. “É preciso olhar para sua própria vida e construir seus próprios significados. O cultivo da própria personalidade é uma iniciativa que irá ajudar na construção da realidade que você decide viver, e não a que os outros lhe impõem. Um cidadão de bem, aliás, deve ajustar a sincronia da sua vida a si mesmo”, diz Marcos Ferreira, membro do Conselho Nacional de Psicologia.

A receita

Bem, aqui estamos a poucas linhas do fim da reportagem. Se eu conseguisse arriscar uma só dica que fosse a campeã para a investigação da persona, eu falaria que mudar a freqüência seria a chave para vermos aquilo que, muito provavelmente, está escrito na nossa cara. Em correspondência a isso, mover a câmera da nossa percepção por dentro, por fora, em nós e nos outros. Rever nosso “fundo das emoções”, questionar a beira rasa dos hábitos diários. Anotar gostos, desgostos, afetos, preferências, manias, gírias, cacoetes. Experimentar dizer diferente, falar de outra forma, sentir o que se sente. Aceitar nossas semelhanças, valorizar nossas particularidades. Em suma, ver, de verdade. “Ousar saber quem se é para poder repensar a vida e tornar-se quem se pode ser”, como afirma Gianetti em seu livro citado anteriormente.

Mas eu, definitivamente, abro mão de saber qual seria o caminho das pedras nessa busca tão pessoal. Prefiro que pensemos juntos em um enorme painel. Onde você pudesse colocar todas as fotos que tem de você mesmo (e as que já perdeu ou rasgou ou xingou e jogou fora). Junto a elas, não economize: anexe as imagens de pessoas importantes de sua vida. Isso, deixe o mural completo, sem faltar nada nem ninguém. E faça de conta que ele existe, digamos, em alguma parede da sua casa. Uma que estivesse no seu caminho quando fosse deixar o recinto, ir para a rua e encarar a labuta. Todos os dias você escolheria uma foto. Em um dia, você olharia para a parede de fotos e seria, novamente, uma criança a jogar bola com os moleques da rua. Noutro dia, voltaria a ser parte da turma da faculdade, cantando a pleno pulmão um dos hits daquela época.

E em um belo dia, sem mais nem menos, você seria apenas o ponto zero, o que não está escrito, o que não foi feito nem fotografado ainda. Seria o ator principal da sua próxima imagem, aquela que você construísse, com consciência, para si e para o exame do mundo. Enfim, um dia, seria você o autor da sua própria identidade, da sua própria vida. Dono da sua imagem.



Fonte: vidasimples.abril.uol.com.br


Envie este artigo para um amigo Imprimir este artigo Comentários




Voltar para a p�gina anterior