Lidar com a morte, enfrentar a morte é, talvez, uma das tarefas mais difíceis do homem pós-moderno. Nem sempre foi assim, parece ter sido mais fácil!
Não abordarei de forma profunda sobre a evolução (ou regressão)
histórica das atitudes e costumes frente a morte mas farei algumas comparações entre épocas passadas e os dias de hoje.
A forma como a morte é encarada tem influência direta sobre a nossa forma de enfrentamento.
As atitudes e práticas frente a morte e, consequentemente, a forma de enfrentamento mudaram muito com o passar dos séculos.
Philipe Ariès fez uma ampla pesquisa sobre como essas mudanças se deram em seus livros ‘O homem diante da morte’ e ‘História da morte no Ocidente’, ambos de 1977.
Vejamos alguns pontos destas mudanças:
Nos séculos passados, até o século XIX, as pessoas eram mais familiarizadas com a morte que nos dias de hoje. Se antes a morte boa era a morte avisada e a morte sem aviso era vista como
vergonhosa, hoje a “morte boa” é a morte rápida, que não causa sofrimento. Mortes repentinas eram desonrosas pois não dava tempo ao morto de se preparar para morrer, pedir perdão, fazer
recomendações e despedidas, ações que o moribundo tinha nos seus últimos dias de vida. Não havia medo de morrer, mas de morrer só. Se a morte era vista como algo natural e familiar, podemos pensar que era mais fácil enfrentá-la.
Pintores da época mostram em suas obras esta familiaridade da morte (Munch, Rembrant, para destacar alguns). Hoje morre-se só. A morte deixou de acontecer nas casas ao lado das famílias e amigos e foi para os hospitais e UTIs distanciando as pessoas da morte. Hoje evitamos falar em morte e quando a vivenciamos entramos em contato com algo que nos é pouco familiar.
Com o desenvolvimento da indústria, da técnica e da tecnologia,
principalmente na medicina, a morte passa de “morte domada”, da qual se dá conta, para a “morte selvagem”. Esta morte representa aquilo que insiste em permanecer desconhecido, incontrolável, que nos dá medo. A nossa dificuldade em aceitar a morte hoje é muito maior o que dificulta seu enfrentamento. A morte sendo vista como um fracasso da tecnologia e da equipe médica, acaba sendo prolongada a qualquer custo. Com esta afirmação não pretendemos interferir no reconhecimento dos benefícios gerados por ambos, tecnologia e médicos. São duas faces de um mesmo fenômeno.
Até o séc. XIX os próprios familiares cuidavam da preparação do corpo e enterro. A perda era vivenciada e compartilhada por todos, pelas crianças, inclusive. Atualmente os familiares deixam tudo a cargo de profissionais. São expectadores e não participantes.
No século XIX surge a dor em relação ao rompimento do vínculo com a pessoa amada e não mais em relação ao morto. Hoje a dor não é apenas pela perda do ente querido, mas por deixarmos de sermos amados quando este se vai.
No mesmo século, na França, surge o espiritismo, com os estudos de Allan Kardec. Surgem também muitos estudos em parapsicologia com a intenção não religiosa de descobrir o que acontece quando morremos. Vê-se aí o desejo de unir vivos e mortos, com objetivo de aliviar a dor causada pela separação. Temos aqui uma mudança em relação ao enfrentamento.
Até o início do séc. XX a morte estava mais presente na comunidade:
• comunidade era afetada
• avisos de morte aconteciam em locais públicos
• corpo morto podia ser visitado
• familiares e pessoas próximas participavam dos rituais
• no período de luto a família recebia visitas, ia ao cemitério e igreja.
No decorrer do séc. XX até os dias de hoje o que se vê é um desejo que a morte passe despercebida, modificando o cotidiano o menos possível. A morte é vista como algo distante, como se pudesse ser inexistente. Ainda podemos observar os rituais descritos acima, mas tornam-se cada vez mais discretos e rápidos. Rituais de despedida quase não existem mais. Uso do crematório aumenta e diminui-se visitas aos cemitérios. Espaço e tempo para chorar porseu ente querido torna-se menor.
O processo de “esconder a morte” começa com a própria doença. Não se fala sobre o que está acontecendo: médicos, família e paciente parecem querer fingir que está tudo bem, na tentativa de protegerem uns aos outros e a si próprios do sofrimento, evitando, assim, que a situação saia do controle, da “normalidade”.
Muitos autores dizem que o paciente sempre sabe o que está acontecendo com ele. Será que a melhor atitude é impedir que a comunicação dos fatos e sentimentos aconteça? Dá para proteger de um sofrimento que já está lá?
Não se chama mais o padre antes que o doente morra. A extrema-unção passa a ser dos mortos e não dos moribundos. A morte torna-se um evento solitário. A repugnância pela doença e pelo corpo decadente torna-se intensa. Este sentimento dura muito tempo já que a possibilidade de prolongar-se a vida é muito maior hoje.
O hospital de hoje é um retrato da tentativa de se esconder a doença e a morte: horário de visita é controlado; visitas são rápidas (dos familiares, amigos e dos médicos); cobre-se o que não pode ser visto.
Se antes a cena do morrer era pública, hoje foi transferida para um quarto, fora de casa, onde o paciente é bem cuidado aos olhos da família, mas fica afastado do contato com os outros.
É uma morte conveniente esta que ocorre no hospital. O cuidado neste momento é profissionalizado, paga-se para não entrar em contato com a morte e com os sentimentos por ela gerados. A família sente-se menos desgastada desta forma. O contato com a morte é muito desgastante e leva o indivíduo querer distanciar-se dela. Isto faz com que pensemos que as possibilidades de enfrentamento tornam-se mais difíceis por estarem os indivíduos mais distantes.
Remédios poderosos: analgésicos e calmantes aliviam e escondem as dores do que está morrendo e também do enlutado. Alivia-se e acalmam-se os sentimentos.
O enfrentamento da morte e a vivência do processo de luto são diretamente atingidos por esta atitude de discrição. Além disso, há uma necessidade cada vez maior de uma produção eficiente e incessante, que contribui para que não paremos nossos afazeres para vivenciar o processo de luto. O lema é “seja forte” e “bola para frente”. As pessoas ficam constrangidas com a própria dor e com a dor do outro.
O modo de enfrentamento atual, que não dá espaço para a vivência do processo de luto, pode causar danos à saúde como mostram muitos estudiosos, de Freud a Parkes, psiquiatra e um dos principais nomes relacionados a luto da atualidade. A comunicação, tão importante no processo de enfrentamento, parece estar impedida. No enfrentamento é preciso reconhecer os sentimentos e poder comunicá-los.
Paralelamente surgem, então, os estudiosos do processo de luto, morte e morrer, que propõem, inversamente à tendência da sociedade, a possibilidade de viver a doença e a morte com dignidade, possibilidade de expressão, comunicação e vivência dos processos emocionais que envolvem este período.