Não, Mariana, Papai do Céu, Deus, essas coisas só existem no mundo da imaginação.
-Eu já fui no céu de avião e alá (sic) não tem ninguém. Não é, papai, que Deus é lenda que nem o curupira e o saci?
Os autores dessas blasfemas passagens são, respectivamente, Ian e David, meus filhos gêmeos, agora com três anos e meio de idade. Mariana é uma amiguinha deles. Discutiam a morte.
Confesso que fiquei um pouco chocado, não com a crueza das declarações dos meninos, que, afinal, apenas reproduzem os diálogos que ouvem em casa e as explicações que os pais lhes dão, mas com o fato de já estarem preocupados com o fim da existência. Sei que as crianças de hoje são precoces, mas não esperava tanto. Por coincidência, andava às voltas com o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), que escreveu: "A alegria e a despreocupação de nossa juventude deve-se, em parte, ao fato de estarmos subindo a montanha da vida e não vermos a morte que nos aguarda do outro lado".
Não acho, é claro, que os garotos tenham desmentido Schopenhauer. Falar sobre a morte é muito diferente do "ver a morte" referido pelo filósofo. Mesmo assim, Ian e David estão se apercebendo de que morrer é um estado um pouco mais sério do que aquele sugerido pelos desenhos animados, em que personagens são esmagados por cofres ou detonados por bananas de dinamite para reaparecer ilesos instantes depois.
Acredito que muito por causa da reação das pessoas à simples menção da palavra "morte", eles vão se dando conta de que esse é um termo com carga lingüística diferenciada, assim como "bunda", "puta" e outros palavrões que vão aos poucos acrescentando a seu vocabulário.
Desconfio de que David, que é mais sensível, já foi até um pouco além. Meses atrás, depois de retornarmos de uma viagem ao Espírito Santo, onde passamos uma semana com a família de minha mulher e os garotos conviveram bastante com os primos, discutindo-se sabe lá o quê, David perguntou à minha mãe se ela iria para o céu depois de ficar muito velhinha. Explicou que as duas avós de um dos primos haviam ficado "muito, muito velhinhas" e morrido. Agora estavam no céu. Exigiu saber se o mesmo ocorreria com ela, uma vez que ela já está ficando velhinha. Disse isso tudo com os olhos cheios de lágrimas.
Eu e minha mulher resolvemos chamar os meninos para uma conversa, uma espécie de contra-ataque materialista. Dissemos que algumas pessoas acreditam em Deus, mas que ele é um pouco como o Papai Noel, isto é, uma entidade do mundo da imaginação. Lembramo-los também de que apenas seres alados vivem no céu e que eles próprios já haviam tomado aviões sem jamais atropelar a avó de ninguém. A seguir, minha mulher, com a naturalidade de uma médica intensivista que assina um ou dois atestados de óbito por dia, explicou que todo mundo morre algum dia e que isso não é assustador. A morte, afirmou ela, não é diferente de um sono muito comprido e sem pesadelos. Tudo volta a ser como era antes que existíssemos, acrescentou. De novo, vislumbro aqui o espectro de Schopenhauer, que escreveu: "Depois da tua morte, serás o que eras antes de teu nascimento".
A estratégia, como se vê pelo diálogo dos meninos com a amiguinha, foi coroada de êxito. Eles estão se tornando pequenos ateus com o mesmo automatismo com que se tornam religiosos os garotos que ajudam a missa.
É engraçado como, para crianças, não há liberdade na religião. Elas herdam as crenças dos pais (ou de quem cuide delas) com a mesma fatalidade com que recebem seus genes. Mesmo que eu desejasse --e quero-- dar-lhes liberdade total para acreditar no que bem entendam, de Deus à teoria das supercordas, passando por discos voadores e virtudes curativas do ginseng, boa parte dessas escolhas são impossíveis antes de uma certa idade. E, até lá, não é dada a possibilidade de suspensão do juízo. Se eu e minha mulher não os "contaminássemos" com nossa visão de mundo, eles seriam infectados pelas "Weltanschauungen" de parentes, coleguinhas, empregadas etc. Parece-me mais honesto eu dizer-lhes abertamente o que penso, mesmo que isso implique eles assumirem minhas opiniões por uns dez ou 15 anos, até que julguem ser o caso de aprimorá-las ou abandoná-las. Também nesse ponto Schopenhauer reservou-nos sábias palavras: "A sólida base de nossa visão de mundo e também o grau de sua profundidade são fornecidos na infância. Essa visão é depois elaborada e aperfeiçoada, mas, na essência, não se altera".
Nessas observações aparece um problema interessante. Por que diabos crianças normalmente reproduzem as posições de seus pais e não pelas de terceiros? A resposta também é de Schopenhauer: "A religião tem todas as coisas a seu favor: a revelação feita por Deus aos homens, as profecias, a proteção do governo, das figuras mais respeitáveis e importantes. Mais do que isso, o enorme privilégio de poder gravar sua doutrina na mente das pessoas quando elas são crianças e, com isso, as idéias se tornam quase congênitas".
Para tornar essas teses um pouco menos excêntricas, acho que devo uma explicação mais geral sobre a filosofia de Schopenhauer. O pensador parte da dicotomia kantiana entre fenômeno e coisa em si ("noumenon") e identifica esta última à vontade. O resultado é aparentemente paradoxal. Para Kant, era impossível perceber como são as coisas na realidade, de modo que precisávamos nos conformar em tentar conhecê-las pela forma como elas aparecem por meio de nossos sentidos para nosso entendimento. Schopenhauer não apenas nega o "dogma" kantiano como ainda afirma que o que realmente importa é a vontade, um conceito que, até então, gozava de baixíssimo prestígio filosófico.
Para Schopenhauer --e tenha em mente o leitor que estou fazendo um resumo grosseiro--, a vontade é ontologicamente anterior ao intelecto e ao próprio ser. Ocupa essa posição especial porque é a forma como desejos, impulsos e necessidades corpóreas se manifestam em nossas mentes (e o corpo, por ser o lugar onde intelecto e matéria se misturam, desempenha um papel privilegiado no sistema schopenhaueriano).
Assim, a vontade desponta como a única "realidade" e inclui tanto elementos biológicos (instintos) como subjetivos (desejo). O resultado é bem pouco animador. Somos continuamente atormentados por nossos desejos. Mal realizamos algum, já passamos para o próximo, sem nunca nos satisfazer. A vida é uma busca desenfreada por necessidades que não podem ser preenchidas. E depois de tudo ainda vem a morte. Ou, como o próprio Arthur escreveu com uma boa pitada de humor: "A vida é uma coisa miserável. Decidi passar a vida pensando nisso". É por essa e outras que Schopenhauer é conhecido como o filósofo do pessimismo. É também considerado um precursor de Nietzsche, Freud e dos existencialistas. Bebeu claramente de fontes hinduístas, sendo uma espécie de introdutor do orientalismo na filosofia ocidental. Não obstante, foi provavelmente o primeiro grande autor ocidental pós-antigo a assumir o ateísmo como parte fundamental de sua doutrina.
Embora a felicidade seja algo que não exista, é possível sofrer um pouco menos na vida. A salvação está, não tanto na filosofia, mas principalmente na estética. A arte, crê Schopenhauer, pode nos transportar da perspectiva "idiota" da individualidade para uma espécie de comunhão com o universal. "As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até o menor desgosto nos atormenta", escreveu. A tragédia é assim, por definição, a mais sublime das artes. Mas mesmo um filósofo como Platão, que nos transporta para o mundo dos universais, atua como uma espécie de artista.
Num terreno já bem menos sublime, eu diria que podemos tentar "sobreviver" nos conformando em extrair os pequenos prazeres da vida. Eles pode estar nas besteiras ditas por uma criança, numa passagem interessante de Schopenhauer ou de qualquer outro filósofo. É certo que logo estaremos insatisfeitos e em busca de novos desejos num turbilhão de irrealizações. Mas e daí? Se essa é a condição humana, devemos nos conformar a ela. Vale ir sorvendo cada arremedo de realização ou gozo que tenhamos oportunidade. Depois que tudo acabar, teremos toda a eternidade para não nos preocupar com mais nada.
Obs: Tirei a maior parte das citações de Schopenhauer de "A Cura de Schopenhauer", de Irvin D. Yalom (Ediouro). Trata-se de um livro de ficção curioso. Traz um resumo competente da biografia e das idéias do filósofo alemão, mas, para o meu gosto, peca por propor uma leitura excessivamente psicanalisante do pensador.
Fonte: Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.
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