Quando o início e o fim da vida se encontram não há como escapar da perturbação. A contradição aflige: a figura cândida de uma criança, há pouco cheia de vida, e o signo da morte em um único corpo imóvel. “É ruim você ver uma criança de cinco anos, dois anos, meses de vida, ter de abrir e estudar, buscar a causa da morte. Ainda hoje, a que mais me pesa é a necropsia em criança”, afirma o médico-legista Eduardo Alves Teixeira.
“É um ser totalmente inocente. É mais difícil aceitar. É uma coisa inesperada”, dá sua explicação Anicarlos Lima. “Uma pessoa idosa é mais fácil, já viveu a vida. A gente se acostuma com a idéia de que já estava chegando a hora.” Kelly Cecília também cita autópsias em crianças como situações extremas.
Um fato recente às entrevistas concedidas por Eduardo, Anicarlos e Kelly, no dia 18 de maio, influenciou profundamente suas declarações. Os três, no dia 14 de maio, trabalharam nos corpos de três vítimas de atropelamento: Madalena Juvenal de Souza, 37, e seus filhos, Kelly Cristina Juvenal de Souza, 8, e Warlen Juvenal de Souza, de nove meses. Eles foram colhidos por uma Parati no km 509 da BR-153, sob uma passarela em frente à fábrica da Mabel.
Os profissionais citaram o mesmo caso, surpresos com a violência do acidente e com o estado em que mãe e filhos chegaram ao necrotério. Segundo entrevista do médico do Siate Carlos Rafael Modesto ao DM no dia do acidente, as mortes foram instantâneas, ou seja, não seria possível fazer nada, mesmo se a ambulância estivesse no local e na hora do fato. A força da colisão foi tamanha, que a criança de colo foi decapitada. “Pode ser daqui a dez anos que vai chocar”, afirma Kelly Cecília.
Papa-Defunto – Logo após ver as vítimas do atropelamento do dia 14 de maio, Kelly Cecília ligou para a mãe, que havia deixado momentos antes na GO-070. “Ela é daquelas danadas para atravessar fora da passarela”, afirma. Tranqüilizou-se ao conversar com a mãe, que estava bem.
Aos 16 anos, Kelly Cecília fez um pedido à mãe: queria ver a cena de um homicídio no setor em que moravam. “Então vamos lá pra você ver e não ficar com medo”, disse a mulher à filha na porta da casa. “Uma pessoa entrou lá e matou ele. Estava caído, cheio de sangue.” Essa é a única descrição que Kelly faz do corpo estirado na residência no Aruanã II, palco do crime. “Eu vi e não achei tão chocante.”
De acordo com a auxiliar de autópsia e embalsamadora, a mãe é uma “papa-defunto”. Nenhuma situação a impede de entrar em um velório. “Quando eu era pequena, me levando para a escola, via um velório e dizia pra gente ir lá. Ela não conhece ninguém, entra e chora. O povo pensa que ela é parente.” Segundo Kelly, a justificativa da mãe para levá-la era de que assim perderia o temor.
Kelly acredita que a vacina deu certo. Ela atribui relação direta entre as experiências da infância ao lado da mãe e o atual desprendimento para trabalhar com cadáveres. “Eu nunca tive medo de nada, sempre fui mais saída, nada me chocava. Muita gente não tem coragem. Melhor, a concorrência cai.”
Médico valoriza espírito e vida
O fim. Nada escapa dele e presenciar cotidianamente o término da vida é oportunidade para tentar entendê-la melhor, buscar uma perspectiva de compreensão do ininteligível. É ter a coragem de criar sua própria ciência, sua própria filosofia, admitir e ter a percepção de que vamos morrer, por mais dor que remoer essa idéia possa causar. “Temos de dar valor à vida e ao espírito porque a gente não vale nada do ponto de vista material. Realmente não sobra nada do nosso corpo”, afirma o médico-legista Eduardo Alves Teixeira.
Todos têm lições a dar e ninguém sabe o bastante para poder desprezá-las. “Aqui, passei a ter um pensamento mais espiritual, filosófico. Você tem toda uma vida, cresce, sofre, consegue as coisas. Depois, por um tiro, uma facada, acaba? Não sei o que acontece do lado de lá, mas não termina por aqui. Seria muito simples. A vida é tão complexa. Foi um processo, mas acho que hoje em dia sou bem mais racional, aprendi a lidar com a perda, que você não pode ter tudo e que certas coisas não há como mudar”, diz Aline Miranda, agente do GIH.
A experiência, por mais estranha que possa parecer aos olhos desacostumados, fortalece. “Depois que você trabalha aqui, tudo muda, a forma de pensar. Deixei de reclamar, de falar que a vida é inútil e que está tudo ruim. Minha vida é muito boa, melhor que a de muita gente. A gente fica mais forte para encarar a vida lá fora com o que vê aqui”, declara a auxiliar de autópsia Kelly Cecília.
O ensinamento é indiferente à idade e ao pouco tempo de experiência. “A gente aprende a respeitar a vida, dá valor no que você pode ter, na sua família. Aprende que cada momento pode ser único. Às vezes sua mãe está hoje e amanhã já não pode estar, que aquele abraço que ela te deu hoje pode ser o último”, declara Anicarlos Lima, que há apenas seis meses trabalha no SVO.
Ideal – Kelly diz não temer. “A morte está esperando aí na frente. Eu não tenho medo de morrer.” Mas logo sugere: “Se pudesse escolher, gostaria de morrer na queda de um avião.” Claramente uma forma fácil, a morte que todos desejam, sem dor e rápida. “Espero que seja tranqüila, em paz, talvez em casa, deitado, a menos dolorosa possível. Aqui sentimos na expressão a angústia, a fisionomia marcada por momentos antes da morte. A gente vê que sofreu muito”, afirma Eduardo, o médico-legista do IML.
O fim ideal aos que vão é também súbito, diferentemente do que ocorrem em A morte de Ivan Ilitch. O sofrimento do personagem de Leon Tolstói chega ao seu extremo quando percebe que ao definhar transforma-se num encosto aos saudáveis, passa a ser evitado pelos entes que um dia o estimaram.
Seu destino é atormentador. Morre em meio a delírios, exilado na cama de um quarto evitado por mulher e filhos. E não se esqueça: uma história, por mais bem contada, não substitui a experiência de vivenciá-la. Principalmente quando o fato é único, sem repetição, e quem o viveu não volta mais para relatá-lo aos que ficam na terra.