Esta semana, falamos dela. Domingo próximo até somos capazes de a acolher e de lhe depositar um beijo apressado.
No resto do ano, trazemo-la ao pescoço, expomo-la na frente do carro, mas será que reparamos verdadeiramente nela?
No fundo, a Cruz olha mais para nós do que nós olhamos para a Cruz. Estamos tão habituados a vê-la que nem sequer nos fixamos na sua mensagem, no significado que encerra, no apelo que incessantemente nos envia.
E, no entanto, não é só o cristianismo que é a religião da Cruz — como dizia Schiller. Em boa verdade, pode dizer-se que toda a nossa arte, toda a nossa cultura, toda a nossa civilização está crucificada. Resumindo, fazemos parte de uma humanidade estaurófera (que transporta a Cruz).
Em toda a parte, ela nos surge. Em todo o lado, ela nos aparece. Ela está profusamente nas igrejas e nos adros. Mas está também abundantemente nos caminhos, no alto dos montes, nos campos, nas casas, nas escolas, nos hospitais, nos cemitérios, à beira da cama, na mesinha de cabeceira, no bolso, esculpida no vestuário ou inclusive tatuada no corpo.
A Cruz tornou-se, desde há muito, um fonema omnipresente, uma palavra polissémica, um traço de união.
Temos, assim, os cruzeiros que encimam localidades e os cruzeiros que atravessam os mares. (E chegámos a ter, durante muito tempo, o cruzeiro como unidade monetária no Brasil. Aliás, o nosso D. João VI, quando lá esteve, não se dispensou de mandar cunhar o…cruzadinho!).
Temos igualmente a cruzeira no meio do papel e a cruzeta para pendurar a roupa. Temos os crúzios, os cruzados e tivemos as cruzadas. E quem não está a pensar no cruzamento de raças ou no cruzamento da bola numa partida de futebol?
Não ficamos, contudo, por aqui. Levar a Cruz ao Calvário indica terminar um trabalho com sacrifício. Mas cruzar os braços já indicia ociosidade, indiferença. Assinar de Cruz (originalmente pôr uma cruz em vez do nome) é um perigo, embora também possa traduzir confiança: equivale a colocar uma assinatura sem ter lido o texto.
Enfim, sobre a fronte fazemos o sinal da Cruz (até o jogador mais distraído não hesita em fazê-lo antes de entrar em campo!); com respeito contemplamos a Cruz peitoral dos senhores bispos e apraz-nos colaborar com a Cruz Vermelha!
Quem diria que a Cruz iria encontrar tamanha adesão na alma do povo? De fato, é bom não esquecer que esta profunda entranheza foi antecedida de uma forte estranheza. É importante ter presente que esta prolongada insistência foi precedida de uma dura resistência. Por causa da Cruz, os cristãos eram acusados, segundo S. Paulo, de loucura e, segundo S. Justino de demência .
Não admira. Flávio Josefo assinala que a condenação à morte na Cruz era «a mais miserável das mortes». Por isso, os romanos não aplicavam tal pena aos seus cidadãos. Reservavam-na para os escravos e para os estrangeiros.
O Antigo Testamento sentenciava: "Maldito o que foi suspenso no madeiro!" (Deut 21, 23). Daí que, como reconhece Martin Hengel, "um Messias crucificado, Filho de Deus ou Deus, só pudesse ser uma contradição nos termos".
Acontece que sinal de contradição (Lc 2, 34) foi o que Jesus sempre foi; mais, é o que Jesus continua a ser. Hoje ainda, a Cruz tem efeitos opostos e provoca reacções díspares. Tanto é um ornamento que alguns ostentam como uma presença que outros contestam. Não falta quem a aprecie como um motivo turístico. Mas também continuam a ser muitos os que a veneram do fundo do coração.
Em suma, a Cruz mantém-se igual a si mesma: interpelante, provocadora. Nós é que, pelos vistos, vamos mudando. A nossa sensibilidade é menos permeável ao amor desegoízador (feliz expressão de Agostinho da Silva!) que ela veicula.
Domingo, vai haver festa, vai haver gente, vai haver foguetes, vai haver prendas. Haverá Páscoa?
A Cruz entrará em nossa casa. O problema é que teimamos em não deixar que ela entre na nossa vida.
Até quando?