Neste artigo, são abordadas algumas questões referentes ao processo de
compreensão da condição de mortalidade, bem como ao enfrentamento da própria
morte pela criança, a partir da posição teórica desenvolvida por John Bowlby
(1985, 1994, 1995) no que foi descrito como Teoria do Apego. Inicialmente, vamos
considerar como a criança enferma se vê, diante dessa condição que, por si só,
já traz importantes sinalizadores quanto às mudanças que atuarão sobre seu
processo de desenvolvimento. Clunnies-Ross e Landsdowne (1988) descreveram os
estágios que indicariam o grau de consciência sobre morte que tem a criança
doente. Estes estágios, traduzidos na percepção da própria criança, são:
1- Estou muito doente.
2- Tenho uma doença que pode matar as
pessoas.
3- Tenho uma doença que pode matar as
crianças.
4- Posso não melhorar.
5- Estou morrendo.
Estes estágios de percepção da morte estão relacionados à habilidade verbal da
criança, de maneira que ela possa se expressar adequadamente, mas é possível
afirmar que antes do domínio da expressão verbal ela já tem essa consciência. A
partir do ponto de vista desenvolvimental, considera-se que por volta dos 8 anos
100% das crianças já acreditam na própria mortalidade, enquanto que aos 5 anos
apenas 50% delas têm essa consciência.
Como enfrentar com a criança a proximidade da morte?
Genericamente falando, leva-se em conta o
desejo dos pais quanto ao que deve ser informado à criança sobre suas condições
diante da doença, principalmente diante do agravamento dessas condições. Por
esse motivo, os profissionais de saúde devem ser cautelosos quanto a pedir
permissão dos pais para abordar tais questões com a criança, embora o mais
recomendável seja, ainda, que os próprios pais o façam. Para a criança doente, é
mais reassegurador ouvir notícias ruins dadas por uma pessoa que ela conheça,
ame e confie. Esta é, sem sombra de dúvida, uma situação aterrorizadora para
todos os envolvidos e torna-se ainda mais difícil quando os pais apresentam
dificuldades de ordem emocional para falar com seu filho, especialmente quando a
criança pede informação, direta ou indiretamente. Alguns aspectos devem,
portanto, ser considerados e são a seguir abordados.
1) O papel dos pais como modelos: na determinação da resposta à criança
sobre as questões da doença e do morrer, esse modelo tem papel predominante. Se
os pais respondem com coragem e expressam tranqüilidade, a criança tenderá a
responder de maneira semelhante. Por outro lado, há crianças que se preocupam
extremamente com o impacto que sua doença causa nos pais e como sua morte irá
afetá-los.
2) Resistência diante de más notícias: quem lida com crianças no
enfrentamento de uma doença potencialmente fatal com freqüência já teve
oportunidade de constatar o quanto a criança é mais forte que os pais diante do
agravamento de seu estado e da proximidade da morte.
3) Os direitos das crianças: extrema atenção deve ser dada ao direito da
criança em saber a verdade sobre seu estado. Considerar o que é de seu melhor
interesse é também função do profissional de saúde que cuida de crianças diante
da morte. A criança que percebe a existência de um segredo a seu próprio
respeito pode se sentir isolada e abandonada pelas pessoas de quem depende e em
quem confia, num período em que está mais vulnerável.
O que dizer à criança?
Convém lembrar que a criança não é cega aos sinais
não-verbais , como linguagem gestual, tom de voz e algumas expressões utilizadas
pela família ou equipe. Ela pode observar quando os pais expressam extrema
preocupação e tristeza, ouve quando falam de forma ambígua, cheia de disfarces,
e querem saber o que está acontecendo. Com freqüência buscam uma pessoa com quem
possam falar abertamente e essa pessoa tende a ser o profissional, pois a
criança tem a percepção de que deve 'proteger' seus pais dessa conversa difícil.
Esse senso de proteção vem, exatamente, da observação que faz sobre como é
difícil para eles falar abertamente sobre o que acontece.
A criança pode não se utilizar de perguntas abertamente expressas para trazer à
tona suas inquietações. Pode, e isso ela faz com freqüência, utilizar-se de
linguagem simbólica para se comunicar ou até mesmo apresentar novos sintomas,
não relacionados diretamente à doença em si, para manifestar o que a preocupa e
as interpretações que faz a respeito das informações que recebe. Além do mais, a
criança que está internada pode presenciar a morte de outras crianças no
hospital, o que a leva, inevitavelmente, a querer saber sobre esses
acontecimentos que, de maneira geral, são escondidos ou disfarçados no cotidiano
hospitalar. Esta atitude colabora grandemente para aumentar a ansiedade da
criança, que tenta, ela mesma, buscar respostas para se situar diante desses
acontecimentos.
Kubler-Ross (1983) afirmou: Embora todos os pacientes tenham o direito de saber,
nem todos têm a necessidade de saber". A criança pode fazer perguntas diretas e
repentinas, surpreendendo os pais que, desprevenidos, ficam sem saber o que
dizer. É importante estar preparado, levar muitos aspectos em consideração e o
que a criança já sabe, o que ela suspeita e o que ela quer realmente saber. Este
último aspecto é crucial, pois é o sinalizador do que, quanto e como podemos lhe
oferecer em informação.
Uma criança seriamente doente pode trazer à tona alguma inquietação que já
estava em sua mente ou algum fato (como ser informado da morte de uma outra
criança no hospital) pode levar a um questionamento amplo. Pode ser que as
perguntas estejam sendo feitas pela primeira vez e se a resposta não for
satisfatória a criança poderá apresentá-las novamente. Devolver a pergunta à
criança muitas vezes é uma maneira de encorajá-la a expressar seus sentimentos.
Por exemplo, se a criança pergunta: 'Eu vou morrer?', um recurso produtivo
poderia ser perguntar-lhe: 'O que a faz pensar que vai morrer?'. Ela pode ter
construído toda uma série de explicações para suas condições de saúde ou pode
estar apenas querendo entender porque os pais sofrem e choram tanto. Algumas
maneiras de facilitar o desenvolvimento desse assunto junto à criança são
apresentadas a seguir, de acordo com o sugerido por Herbert (1996):
* buscar ocasiões para conversar com a criança, enquanto brinca, desenha ou faz
outra atividade com ela.
* perguntar à criança qual é o tipo
de apoio que ela gostaria de receber.
* deixar claro que ela pode sentir
medo, raiva ou alguma forma de sofrimento, sem que isso acarrete outro
problemas. Ao mesmo tempo, estar atento a verbalizações e comportamentos que
sejam indicadores de problemas, como: medo, solidão, depressão.
* abordar os assuntos considerados
tabu, ser honesto ao responder essas perguntas.
* ter tempo e atenção em abundância
e, ao mesmo tempo, garantir que a criança possa usufruir de alguma privacidade,
para poder expressar suas emoções ou até mesmo ficar quieta, sem ser perturbada.
* ao fim, sugerir e apoiar que ela
escreva cartas de despedida, ou que faça desenhos para presentear as pessoas
importantes em sua vida.
Desenvolvimento do Conceito de Morte
A maneira pela qual a criança vai dar sentido à
morte dependerá de seu desenvolvimento cognitivo, emocional e físico. As noções
apresentadas a seguir baseiam-se em estudos empíricos (Kane, 1979; Piaget, 1929)
e foram, portanto, baseadas em generalizações para as quais, obviamente, há
exceções.
- Crianças até 5 anos de idade:
- aspecto cognitivo: até 4
anos, a criança não entende a permanência da morte; devido ao pensamento
egocêntrico, característico deste período, a criança pode interpretar
erroneamente os eventos do mundo, principalmente a noção de causalidade, pois
atribui a motivos psicológicos a causa dos eventos. Pode pensar, por exemplo,
que a mãe foi para o hospital porque ela, criança, foi mal-criada. A criança
desenvolve gradualmente o conceito de morte e suas implicações e, até entender
que a morte é irreversível, poderá esperar pela volta da pessoa morta. Ela
conhece a palavra 'morte' mas desconhece, como já dito, suas implicações.
- aspecto emocional: antes de
4 anos, a criança sente falta do pai ou mãe ausente e espera pela volta. A
criança com apenas algumas semanas de idade reage com ansiedade de separação se
um dos pais estiver ausente, seja por poucas horas ou por um período mais longo.
Crianças pequenas apresentam humor deprimido por longos períodos de tempo e não
podem diferenciar sentimentos com a mesma precisão que têm as mais velhas.
- aspecto físico: crianças
pequenas que não têm ainda habilidade para se comunicar verbalmente reagem
fisicamente ao luto por outros meios: enurese, perda de apetite, distúrbio de
sono, vulnerabilidade a infecções.
- Crianças de 5 a 10 anos de idade:
- aspecto cognitivo: o estágio
do pensamento intuitivo (dos 4 aos 7 anos) permite à criança do estágio
anterior, passando a classificar, ordenar e quantificar objetos e situações,
embora ainda não conheçam os princípios que regem estas leis. A partir dos 7
anos, no estágio das operações concretas, esses princípios ficam mais claros.
Antes dos 7 anos, é atribuída vida às coisas inanimadas mas é por volta dos 7
anos que ficam claros os conceitos de 'vida' e 'morte'. Por volta de 8 a 9 anos,
a criança percebe que a mortalidade se aplica a ela também. O aspecto de
separação presente na morte é percebido por volta dos 5 anos e faz com que elas
se preocupem com a solidão que as pessoas sentem com a morte. Também nessa idade
a criança percebe a perda da mobilidade da pessoa morta, mas pode ainda não
entender que ela não vê, sente ou ouve. A irreversibilidade da morte é entendida
por volta dos 6 anos, mas pode ser complicada pelas vivências que as crianças
têm com jogos e brincadeiras nos quais o personagem morre e volta à vida.
- aspecto emocional: são
comuns os distúrbios emocionais e comportamentais, como recusa em ir à escola,
roubo, falta de concentração, até um ano depois da morte.
- Adolescentes:
- aspecto cognitivo: a
aparência do morto é identificada por volta dos 12 anos, quanto às diferenças em
relação ao corpo vivo. O adolescente fica muito interessado em entender as
características da condição do morto. Como os adultos, reconhecem a permanência
da morte e se colocam na busca de sentido para perguntas como 'Por que?'. O
pensamento é mais flexível e capaz de abstrações, podendo construir suas
próprias teorias sobre morte e vida.
Considerações finais:
Ao trabalhar com a criança
gravemente enferma, o profissional vivencia experiências de importância
incomensurável e que o levam a refletir profundamente sobre o impacto que sua
ação tem sobre essa criança e seus familiares. A possibilidade de cuidar de si,
quanto às suas respostas emocionais e cognitivas, não deve, portanto, ser
desprezada. O preparo técnico desse profissional é fundamental, mas vale a pena
considerar o quanto ser profissional de saúdo e expõe a situações cujo
enfrentamento requer mais do que o domínio da técnica.
Fonte: Maria Helena P. Franco
Referências bibliográficas
Bowlby, J. (1985) Perda, tristeza e
depressão. São Paulo, Martins Fontes.
Bowlby, J. (1994) The Making and
Breaking of Affectional Bonds. Londres, Tavistock/Routledge.
Bowlby, J. (1995) A Secure Base;
Clinical Applications of Attachment Theory. Londres, Tavistock/Routledge.
Clunies- Ross, C. e Landsdowne, R.
(1988) Concepts of death, illness and isolation found in children with leukaemia.
Child Care, Health and Development, 14, 373-386.
Herbert, M. (1996) Supporting
Bereaved and Dying Children and their Parents. Leiscerter, The British
Psychological Society.
Kane, B. (1979). Children's
Conception of Death. Journal of Genetic Psychology, 134, 141-145.
Kubler-Ross, E. (1983) On Children
and Death. Nova Iorque, Macmillan.
Piaget, J. (1929). The Child's Concept of the World. Londres, Routldge & Kegan
Paul.