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A morte acontece num instante arbitrário
que depende da cultura e da tecnologia disponível. Definir um momento exato para
a ocorrência da morte não é conceito indiscutível, mas preocupação
característica da cultura ocidental.
Os funerais gregos e egípcios, por
exemplo, sugerem que a morte seria uma fase de transição, jamais um instante
definido como a imaginamos nós. Na civilização cristã, a idéia de transição foi
substituída pela imagem do último suspiro de Jesus Cristo martirizado na cruz,
símbolo máximo da passagem deste mundo para outro melhor.
Por milhões de anos, foi fácil para
os médicos diagnosticar morte: bastava verificar se o doente respirava. Mortos
estariam os ineptos a essa função fisiológica essencial, a única da qual o corpo
humano não pode prescindir por mais do que uns poucos minutos.
De fato, privado de oxigênio por
quatro ou cinco minutos, nosso cérebro costuma sofrer danos irreversíveis. Mas
outros órgãos são bem mais resistentes à anóxia. O coração é um deles - capaz de
bater por muitos minutos depois que a última molécula de oxigênio fugiu dos
pulmões e até fora do corpo quando retirado cirurgicamente.
Estabelecer critérios para
caracterizar a morte se tornou necessário a partir do aparecimento dos primeiros
aparelhos de ventilação mecânica, que permitiram manter vivas pessoas incapazes
de respirar por conta própria. Essa necessidade se tornou mais premente com o
advento dos transplantes de órgãos na década de 1960.
Discuto essas idéias menos por
pretensões filosóficas do que motivado pela leitura de um artigo de E. Wijdicks,
neurologista da Mayo Clinic, "O Diagnóstico de Morte Cerebral". O autor resume a
evolução dos critérios adotados para o diagnóstico de morte cerebral a partir de
1959, quando Mollaret e Goulon introduziram o termo "coma dépassé" -o coma
irreversível.
Os dois médicos franceses
caracterizaram essa condição com base no estudo de 23 pacientes em coma que
haviam perdido a consciência, todos os reflexos do tronco cerebral e a
capacidade de respirar sem aparelhos e que apresentavam eletroencefalogramas em
linha reta, característicos da ausência de ondas cerebrais.
Reavaliações dos critérios de morte
cerebral foram mais tarde realizadas por um comitê da Universidade Harvard
(1968) e por uma conferência do Medical Royal Colleges (1976), da Inglaterra.
Ficou, então, estabelecido o consenso de que a morte deveria ser definida como
"a perda completa e irreversível das funções do tronco cerebral". A definição
considerava o tronco como o epicentro das funções cerebrais humanas, porque sem
ele o organismo perde a capacidade cognitiva e a possibilidade de fazer
movimentos voluntários ou reagir a estímulos do ambiente. Sem atividade no
tronco cerebral, a vida humana podia ser considerada extinta.
Mesmo na ausência de um tronco
cerebral em funcionamento, o coração continua a repetir suas sístoles e
diástoles, garantindo acesso de oxigênio ao resto do organismo para as
atividades inerentes à vida vegetativa.
Em 1995, a Academia Americana de
Neurologia conduziu uma revisão a respeito das dificuldades para diagnosticar a
morte e adotou os seguintes princípios: "A declaração de morte cerebral requer
não apenas uma série de testes neurológicos cuidadosos, mas também o
esclarecimento das causas do coma, a certeza de sua irreversibilidade, a
resolução de qualquer dúvida em relação aos sinais neurológicos clínicos, o
reconhecimento de possíveis fatores conflitantes, a interpretação dos achados de
neuroimagem e a realização dos exames laboratoriais necessários".
Da diversidade de resistência à falta
de oxigênio que os diferentes tecidos do organismo apresentam, resulta que a
morte é fenômeno de alta complexidade. Não está restrita aos limites do último
suspiro, como o cinema e a arte dramática nos fizeram crer. Não apenas o coração
continua a bater dentro do peito, mas as unhas e os cabelos crescem, as células
do revestimento interno do aparelho digestivo e da pele ainda se multiplicam e
muitos hormônios, enzimas e proteínas são produzidos por minutos e até horas
depois do instante que se convencionou chamar de morte.
Essa definição de morte, baseada na
ausência de atividade do tronco cerebral, é prática, porém arbitrária. Pode até
ser interpretada de forma contraditória. Por exemplo, aceitamos que um garoto de
18 anos atropelado seja doador de órgãos ao demonstrarmos que seu tronco
cerebral está inativo, mas ficamos chocados quando uma gravidez é interrompida
voluntariamente na oitava semana, fase em que não existe a menor chance de
atividade cerebral coordenada no embrião.
Com a descoberta dos aparelhos de
ventilação pulmonar, o conceito de morte evoluiu do último suspiro para uma
hierarquia de valores na qual certas atividades do sistema nervoso central valem
mais do que todas as outras do organismo. São atividades essenciais para
caracterizar a condição humana. Na ausência delas, admitimos extinta a vida,
mesmo que os outros órgãos continuem saudáveis.
Ao considerar a morte como passagem,
os gregos e os egípcios talvez não fossem tão ingênuos.
Fonte:
www.drauziovarella.com.br
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