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   Em Buenos Aires, Como Numa Sessão Espírita

        Outras cidades podem ter como atração turística uma torre (a Eiffel), uma ruína (o Coliseu) ou um morro (o Corcovado). Buenos Aires tem como maior atração um cemitério. O pretensioso Obelisco do centro da cidade, plantado, como pau-de-sebo, entre ferozes correntes de tráfego, ainda dá o máximo de si para cumprir o destino de cartão-postal. Mas de há muito já foi superado pelo cemitério da Recoleta – ele e seu entorno – como o canto mais querido e mais visitado da cidade.

        Há cemitérios que atraem turistas também em outras partes. Em Paris, o cemitério de Père-Lachaise é um prato cheio tanto para os amantes da literatura, que se deleitarão entre os túmulos de Balzac, Proust ou Apollinaire, quanto para os apreciadores da canção popular, que se renderão a Edith Piaf, ou os entusiastas dos amores impossíveis, que se prostrarão diante do mausoléu com os supostos restos de Abelardo e Heloísa. Em Londres, o túmulo de Karl Marx no Highgate Cemetery é objeto de peregrinações tão reverentes quanto as que demandam o de John Kennedy no cemitério de Arlington, nos arredores de Washington. No Rio de Janeiro, o Cemitério de São João Batista oferece ao visitante os túmulos de personalidades da vida nacional que vão de Santos Dumont a Chacrinha, de Villa-Lobos a Carmen Miranda.

        Buenos Aires é um caso único, porém – a começar pelo fato de que, enquanto a visita ao Père-Lachaise, em Paris, ao Highgate, em Londres, ou ao São João Batista, no Rio, é um item opcional, que o turista cumprirá se tiver tempo de sobra ou interesse específico na matéria, a visita à Recoleta, em Buenos Aires, é obrigatória. O visitante que deseja usufruir a cidade será fatalmente conduzido até lá, assim como o de Florença é conduzido ao Ponte Vecchio ou o de Salvador ao Pelourinho. A Recoleta apresenta-se ao visitante de forma mais marcante do que o Rio da Prata. Não há como escapar. E isso por um motivo simples: quem está em Buenos Aires para desfrutar a cidade tem de ir até onde melhor se pode fazê-lo. E onde melhor se pode fazê-lo é lá mesmo.

        Também ao contrário dos outros cemitérios citados, o da Recoleta tem a peculiaridade de ter servido de pólo para o desenvolvimento, ao seu redor, do bairro mais elegante da cidade, dotado, além de edifícios residenciais, de um complexo de hotéis, restaurantes, cafés, cinemas, centros culturais e shopping centers. Não é que, acidentalmente, um bairro chique e cheio de atrativos tenha surgido ao redor de um cemitério. Não houve nisso nada de acidental. O bairro chique, com os hotéis, os restaurantes e tudo o mais, surgiu por causa do cemitério. O cemitério foi o pólo gerador de um entorno de charme. Em outros lugares o pólo que dá origem a um entorno atraente é um palácio antigo ou um museu novo. Em Buenos Aires é um cemitério. Só na Argentina, mesmo.

        Só na Argentina? Isso vai por conta da fama de peculiares cultores da morte que, segundo o clichê, se aplica aos argentinos. O país cultiva, e oferece ao mundo, mortos da qualidade de uma Evita Perón, de um Che Guevara, de um Carlos Gardel. Todos os países, claro, têm mortos ilustres. Mas a Argentina tem mortos "mais vivos", se assim se pode dizer. Evita, que teve o cadáver surrupiado pelos adversários políticos e escondido, em diferentes lugares, por anos a fio, foi submetida, depois de morta, a peripécias maiores do que teve em vida. Gardel está tão vivo que, segundo a velha anedota, "canta cada vez melhor". Aos mortos míticos juntou-se, mais recentemente, Jorge Luis Borges. Topa-se com sua cabeça ou mesmo o corpo inteiro, em bonecos em tamanho natural, em lojas e cafés de Buenos Aires. Dele já se pode afirmar que "Jorge Luis escreve cada vez melhor". O culto dos mortos combina com o "sentimento trágico da vida" que, segundo o espanhol Miguel de Unamuno, é apanágio do sangue hispânico, e com a dramaticidade do tango, a única dança popular que, de acordo com o argentino Ernesto Sábato, é "introvertida". Só que...

        Só que – e esta é a mais singular das singularidades – uma visita à Recoleta não tem nada de dramático. O bairro é o mais alegre e festivo de Buenos Aires. E à obrigatória entrada no cemitério, para quem está no bairro, não se segue o clima pesado de reverência pelos enigmas deste mundo ou de temor diante da fragilidade da vida. Zanzar por suas aléias é agradável como espairecer numa praça italiana. O cemitério oferece como atrações mortos ilustres e a extravagância dos mausoléus. Entre os mortos, desfilam diante do visitante (sim, ali os mortos desfilam) uma profusão de "tenientes generales", presidentes históricos como Sarmiento e – o túmulo mais procurado – Evita. Mas o que faz mesmo a especificidade do lugar nem é o cemitério em si, mas sua perfeita integração com o centro cultural ao lado, a feira hippie em frente, os restaurantes do outro lado da rua, os espaços verdes dos jardins um pouco abaixo. Mortos e vivos se integram, nesse recanto da cidade, melhor que numa sessão espírita. Eis o mistério de Buenos Aires.


        Fonte: Roberto Pompeu de Toledo - Revista Veja Brasil






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