A
atividade funerária na América Latina está absolutamente influenciada por uma
série de condicionamentos sociais, culturais e religiosos que à primeira vista
parecem inalteráveis ou pelo menos estáveis por muito tempo.
Contudo, basta analisar a questão com maior profundidade para observarmos
que algumas práticas vêm mudando e quando notamos é muito tarde para nos
adaptarmos positivamente à essas mudanças.
Por
exemplo podemos relatar a experiência de Buenos Aires, onde a cremação
cresceu em mais de 60% nos últimos 20 anos. O mesmo acontece no costume
familiar de não velar seus mortos e conduzi-los, mais ou menos, diretamente aos
cemitérios.
As
mudanças que mencionamos foram se dando gradualmente e o máximo que se fez a
respeito foi dar motivo a comentários entre os empresários do setor.
A
posição daqueles que notam uma mudança de tendência nos costumes é no geral
minimizá-los e esperar que se revertam da mesma forma que apareceram, quero
dizer ''espontaneamente''.
Nós
que temos a responsabilidade de conduzir empresas ou instituições estamos
obrigados a dar um passo mais no sentido da análise e tendência das mudanças
sociais e culturais que acontecem em nossa atividade. Essas mudanças podem
afetar a rentabilidade empresarial para o bem ou para o mal, segundo nos
preparemos para enfrentá-las.
Ao
buscar respostas às milhares de inquietações que se nos apresentam ao tentar
analisar as mudanças presentes e futuras que podem afetar nossa atividade, nos
encontramos com um artigo publicado em Papeles de Filosofia (Buenos Aires,
1996), do recentemente falecido filósofo argentino Enrique E. Marí. Nesta obra
cujo nome é ''El Discurso de la Muerte'' se analisam alguns fenômenos que se
mostram de grande interesse para nossa atividade.
A
primeira questão pela qual se interessa o artigo é a peste ocorrida em Atenas,
que Tucídides relata no capítulo VII de La Guerra del Peloponeso. Nessa obra
se descreve as enormes e devastadoras conseqüências de uma peste cuja origem
se desconhece, mas que alterou dramaticamente a vida nessa cidade. A principal conseqüência
desta peste foi a supressão de todos os ritos funerários e de cerimônias
fúnebres que eram habituais nessa zona antes da infeliz epidemia. Esse fenômeno
é claro sintoma de uma paralisia social ante a emergência. A universalidade da
morte não dá mais tempo para que os cadáveres insepultos recebam as
cerimônias que merecem ou eram habituais nessa sociedade.
Se os
ritos desaparecem é porque está interrompida a vida social.
O que
ocorre hoje em dia nas grandes cidades como Buenos Aires, entre as classes alta,
média alta e média da sociedade? Pouco a pouco vão se degradando os ritos e
honras fúnebres até quase desaparecer.
Ausência
de velórios, cerimônias religiosas, avisos na imprensa, cortejos de
acompanhamento, oferenda florais..., tudo vai deixando-se de lado usando como
desculpa a sobriedade, frugalidade, simplicidade ou o que seja.
Retornando à obra de Marí, cabe destacar um fenômeno que o autor descreve e
denomina ''a morte invertida''. Este conceito alude a uma série de práticas
que tendem a dissimular e expulsar a morte do âmbito da sociedade.
O
traslado dos moribundos para os hospitais ( massivo nas grandes cidades) aparece
como outro dos riscos da morte invertida. A morte, já inevitável, é retirada
do entorno familiar e trasladada para um âmbito tecnológico despersonalizado
sem acesso a terceiros. O homem moderno morre só.
A
substituição de carros fúnebres por automóveis que se confundem com a maioria
do tráfego urbano, a supressão do luto nas vestimentas, a redução ao mínimo
da administração de sacramentos preparatórios para a morte, o desaparecimento
das cláusulas piedosas nos testamentos, a indiferença aos dias de luto
designados nos códigos civis e o traslado a cemitérios fora dos limites da
cidade, mostram que a intenção da comunidade é levar a morte para fora do
âmbito da sociedade contemporânea.
Os
ritos desaparecem porque a racionalidade tecnológica não quer pausas que afete
sua continuidade.
Tenta-se neutralizar ideologicamente toda mobilização social relacionada com a
morte. A sociedade tecnológica e capitalista requer modelos, exemplos de
juventude, de êxito e de consumo. Para essa concepção da vida social, a morte
é um fracasso, que a sociedade moderna não tem podido superar.
Que
conclusões podemos tirar com relação ao exposto?
Que o fenômeno
da chamada morte invertida é apto para explicar o que ocorre nas
grandes cidades e em especial dentro das classes alta, média alta e média.
Entre outros grupos sociais e em lugares mais pequenos ou rurais a morte e seus
ritos têm, afortunadamente para nós, um tratamento mais tradicional.
A origem e
razão de ser de nossas empresas funerárias é assessorar e providenciar o
necessário para a realização dos distintos ritos que se faz à morte.
A
supressão ou minimização dos ritos fúnebres significará cedo ou tarde o
desaparecimento das empresas funerárias.
Como
empresários do setor deveríamos saber que os ritos ou cerimônia funerárias
não são uma série de gestos e reverências sem sentido, e ao contrário,
constituem uma liturgia religiosa ou civil que tem um profundo
significado.
Quando
falamos de significados não devemos encontrar respostas racionais e sim
buscá-las também nos âmbitos afetivo, psicológico, espiritual, religioso e
mágico, que não são menos importantes na vida de um homem.
Se
não conhecemos a origem, importância ou significado de um costume, rito ou
tradição jamais propiciemos sua degradação amparando-nos no prático,
moderno ou econômico.
Se
não queremos entrar em aspectos mais profundos dos ritos, tradições e
cerimônias, pelo menos deveríamos defende-los com o objetivo de manter viva
nossa empresa.
A
''modernidade'' já demonstrou que não produz sociedades desenvolvidas com
homens mais felizes.
Não
estamos propondo o atraso ou a tradição como valores supremos, e sim ser
agentes da evolução nas práticas funerárias. Propiciarmos a substituição
de ritos não sua supressão.
Por
último para dar um exemplo a respeito de nossa proposta podemos analisar o fenômeno
dos cemitérios parque, que conseguiram êxito não por suprimir cerimônias e
sim, ao contrário, por melhorá-las e adaptá-las.
A natureza com todo seu
significado não procurou ocultar a morte, revalorizou-a levando-a a um marco
favorável: à reflexão e ao consolo. As estátuas de culto, as capelas e
sepulcros privados com seus vitrais evocativos da divindade foram substituídos
pelo céu, as árvores, as flores e os campos, que são a máxima expressão da
criação.
Podemos seguir exemplificando.
Para muitos cremar um cadáver não é simplesmente ''terminar com um problema''
e sim transformar a matéria em ar, como modo alegórico de deixar realmente o
mundo material e reingressar no espiritual. Parece aconselhável então
reformular ritos que tendem a dar significado a esta prática.
Espero, colegas e amigos, que este e
outros temas sejam motivo de inquietude, debate e enriquecimento recíproco.
''Uma maneira fácil de conhecer uma
cidade, é indagar como se trabalha, como se ama e como se morre nela'' - Albert
Camus - La peste
Oscar Fidanza
Jardín de los Ceibos
Buenos Aires/Argentina
Revista Memorial