O temor do ''contágio'' pela morte
explica a solidão e a frieza das unidades de terapia intensiva, onde, muitas
vezes, os doentes terminais morrem sem a possibilidade de dizer uma última
palavra aos que amam e sem ninguém que lhe ofereça conforto espiritual. Claro
que morrer assim dá muito medo. Estabelece-se aí um círculo vicioso: temos pânico
da morte porque ela nos parece horrível e a tornamos muito mais horrível do
que poderia ser porque nos afastamos dela – e de quem morre. O escritor
budista Sogyal Rinpoche, autor de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer,
espantou-se quando visitou o Ocidente pela primeira vez, na década de 1970, e
constatou a insensibilidade do atendimento aos doentes terminais. ''O que me
perturbou profundamente, e ainda continua a perturbar, é a quase inexistência
de auxílio espiritual que há na cultura moderna para aqueles que vão morrer'',
escreveu ele. ''Cuidado espiritual não é luxo para poucos; é direito
essencial de todo ser humano.''
No início dos anos 70, iniciou-se um movimento de
humanização da medicina, principalmente no campo do atendimento aos pacientes
terminais, que veio a se contrapor à frieza ainda dominante dos hospitais
modernos. A enfermeira britânica Cicely Saunders inovou ao propor um
atendimento multiprofissional aos pacientes portadores de câncer avançado, em
locais chamados hospices. Nesses abrigos, o doente conta com os cuidados
médicos e com a proximidade da família. Da equipe multiprofissional fazem
parte também psicólogos e sacerdotes de diferentes religiões, prontos a
oferecer assistência psicológica e espiritual. O ''movimento hospice''
incentivou a criação das unidades de cuidados paliativos, que funcionam
ligadas aos hospitais, e do homecare, o atendimento domiciliar a
pacientes terminais. A idéia é simples: tão fundamental quanto ter uma boa
vida é gozar de uma morte mais humana, mais envolta em serenidade e ternura.
Eis o conceito, ainda tímido no meio médico mas bastante pertinente, de
ortotanásia – a morte digna, sem abreviações desnecessárias e sem
sofrimentos adicionais.
No Brasil, o pioneiro na divulgação dos
cuidados paliativos foi o médico Marco Tullio de Assis Figueiredo, professor da
Universidade Federal de São Paulo, antiga Escola Paulista de Medicina. Além de
ter criado dois cursos voltados aos estudantes da área de saúde – um sobre
Tanatologia (o estudo da morte) e outro sobre Cuidados Paliativos –, Marco
Tullio implantou uma Unidade de Cuidados Paliativos no Hospital São Paulo. ''Os
estudantes de Medicina, em geral, nada aprendem em seus cursos sobre a morte e a
dimensão do processo de morrer'', diz ele, que é sócio-fundador da Associação
Internacional para Hospices e Cuidados Paliativos. ''Por isso, vemos médicos
tentando manter a vida do paciente a qualquer preço, mesmo que isso implique em
mais sofrimento para o doente.'' Tal prática é conhecida como distanásia,
conceito que significa o prolongamento da agonia na tentativa de adiar a morte e
de conseguir uma sobrevida sem qualquer qualidade – em oposição à ortotanásia.
A equipe multiprofissional de Marco Tullio
também prevê o atendimento domiciliar. ''Faço o possível para que meus
pacientes morram em casa, próximos dos familiares. Procuramos, assim, resgatar
as noções de humanidade e dignidade na morte que a medicina contemporânea
perdeu'', afirma ele. Outras unidades de cuidados paliativos estão sendo
criadas em diversas regiões do Brasil, mas ainda existe resistência, mesmo
entre os médicos, em falar de morte.
Num esforço para reaproximar o tema do
cotidiano de crianças, adolescentes, adultos e idosos, a equipe do Laboratório
de Estudos sobre a Morte, da USP, preparou uma trilogia de vídeos chamada
Falando de Morte. Cada episódio é dedicado a uma fase da vida. E a morte
é vista como uma das etapas da existência. O objetivo é estimular discussões
sobre o assunto na escola, na família, nos hospitais. ''Falar da morte é
transformá-la em aliada, conselheira, em uma presença natural'', afirma Ingrid
Esslinger, integrante da equipe. ''Lidar com ela de modo saudável significa ter
mais realizações, finalizar mais tarefas e pedir mais perdões ao longo da
vida. Só assim se vive de modo mais pleno e se pode morrer mais serenamente,
rompendo com o hábito de deixar certas decisões para amanhã, depois de amanhã
e assim por diante.''
Na filosofia oriental, existem práticas
específicas de preparação para a morte. A principal delas é a meditação,
que tem o objetivo de domar a mente, a ansiedade e as emoções negativas sempre
– mas especialmente no momento em que a pessoa se aproxima da morte. A maior
tranqüilidade dos orientais em relação à finitude se expressa também no
maior respeito em relação aos velhos. As pessoas que se encaminham para o
final da vida são respeitadas, incensadas. E, não raro, têm suas existências
festejadas. Não são tornadas invisíveis e indesejáveis, como ocorre com freqüência
no mundo ocidental.
Uma das imagens utilizadas na meditação
para caracterizar os instantes finais da existência é a de uma bela atriz
sentada em frente ao espelho. O último espetáculo está prestes a começar.
Ela retoca a maquiagem e repassa a sua fala antes de pisar no palco pela última
vez. Está preparada para a apresentação derradeira. Esse é o objetivo da
meditação: adquirir a capacidade de manter a mente tranqüila e o espírito
sereno no momento da morte, independente de quando e de como ela aconteça.
Reconcilie-se com a morte. Não por
morbidez, não para se esquecer de viver, não porque seja bom deixar de
existir. Mas simplesmente porque ela vai acontecer e não somente com você –
mas com todos os que andaram, andam ou venham a andar sobre a Terra. A você e a
mim, portanto, resta apenas aprender a conviver com ela. Encará-la de frente,
compreendê-la, admiti-la. Em vez de escamoteá-la, negá-la, escondê-la. E,
quem sabe, assim, sofrer menos com a visita que ela nos fará um dia e com os
eventuais sinais da sua presença que ela já tenha plantado ao nosso redor.
Desejo uma excelente vida para você, leitor. E uma boa morte.
Dicas de Leitura
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A Arte de Morrer,
Marie de Hennezel e Jean-Yves Leloup.
Editora Vozes, Petrópolis, 1999
A Solidão dos Moribundos,
Nobert Elias.
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001
Da Morte,
Roosevelt Cassorla (org.).
Papirus Editora, Campinas, 2001
Distanásia – Até Quando Prolongar a Vida?,
Leo Pessini. Edições Loyola/Editora do
Centro Universitário São Camilo, São Paulo, 2001
Memento Mori,
Muriel Spark.
Companhia das Letras, São Paulo, 2001
Morrer Não Se Improvisa,
Bel Cesar.
Editora Gaia, São Paulo, 2001
Morte e Desenvolvimento Humano,
Maria Júlia Kovácz.
Casa do Psicólogo, São Paulo, 1992
O Livro Tibetano do Viver e do Morrer,
Sogyal Rinpoche.
Editora Talento, São Paulo, 1999
Reflexões sobre a Vida e a Morte,
Vera Lúcia Rezende (org.).
Editora da Unicamp, Campinas, 2000
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Fonte:Superinteressante
Fevereiro/2002
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