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   A Importância do Ritual da Última Despedida

       No novo filme Last Orders (Últimas Ordens), um grupo de velhos amigos é encarregado de espalhar as cinzas de um colega falecido. Eles se revezam para levá-lo - ou pelo menos o que dele restou - dentro de uma urna marrom, numa longa viagem até a orla do mar.

        O grupo faz uma parada para almoçar. Seria indelicado deixar o amigo sozinho no banco traseiro do carro. Por isso, concordam que devem levá-lo junto, dentro de uma sacola de plástico de supermercado (para não escandalizar os estranhos).

        À medida que o filme vai se desenrolando, o cumprimento dos desejos do morto vai desencadeando, em cada um dos amigos, uma torrente de lembranças e de perguntas sem resposta a respeito da vida e da morte, inclusive esta: ''Quem cuidará de seus próprios despojos quando chegar a sua hora?'' Em última análise, este ritual de fim da vida se torna, para todos os vivos, uma das experiências mais profundas da existência.

        Mas, por que deveria ser assim? Por que esse desfazer-se da matéria morta interessa tanto à espécie humana? No curso de milênios, em todas as culturas, alguns sepultaram, outros cremaram, outros lançaram seus mortos num pântano. Outros os deixaram em um campo para que os animais os limpassem. Alguns retiravam partes do corpo de um ente querido para conservá-las em vinho de arroz. Alguns choram e outros dançam durante os funerais, enquanto outros velam mantendo longas conversas com os mortos.

        A variedade de coisas que os seres humanos fazem aos seus cadáveres parece ser quase ilimitada, ficando ao sabor de sua imaginação. Mas todas as culturas fazem alguma coisa. E quando as regras desse ritual são violadas, como o foram no crematório de Noble, Georgia, ou nos atentados terroristas contra o World Trade Center, em Nova York, esse é um dos poucos momentos de sacrilégio, de transtorno da ordem normal das coisas, que até mesmo as pessoas mais profanas sentem.

       A maioria dos que perderam entes queridos no World Trade Center, por exemplo, não tem nada de tangível do que se despedir, o que pode tornar o fim do luto mais difícil. ''A necessidade de completar o processo do luto leva a pessoa a sentir-se como que presa dentro de um limbo de desolação, quando não tem um corpo ao qual prestar um serviço ritual'', diz Donald K.Pollock, antopólogo da Universidade de Seattle em Buffalo.


Americanos enganados: corpos dos parentes não
foram cremados

        Na Georgia, a finalidade e o conforto que acompanham o ato de proporcionar um descanso aos mortos foram não somente destruídos, mas também ultrajados com a recente e macabra revelação de que os corpos confiados ao Tri-State Crematory haviam sido simplesmente empilhados em um terreno.

        O professor Pollock chamou isso de ''inversão'' da experiência, já que os sobreviventes ''pensavam que já haviam dado um destino apropriado aos corpos de seus entes queridos'', para depois descobrir que eles não estavam descansando em paz, mas, como fantasmas saídos de uma obra de Shakespeare, vagavam inquietos pelo mundo dos vivos.

        Atualmente, em grande parte da sociedade ocidental, cada vez menos os vivos encaram frontalmente seus mortos, preferindo confiar a profissionais a tarefa de limpar, embelezar, sepultar e cremar. Os corpos são removidos, enterrados, cremados, de forma altamente eficiente e higiênica. Em sua maior parte, os ocidentais preferem não entrar mais nesse negócio insalubre e perturbador de serviço funerário. Apesar disso, segundo Lynch, todos achamos que devemos opinar a respeito do destino final dos corpos e todos queremos ter o conforto de saber que isso foi feito.

        Os familiares e amigos enlutados esperam sentir que escolheram a maneira apropriada de ''entregar seus mortos ao esquecimento'', diz Lynch. ''Quando alguém nos usurpa esse direito, como se fez criminosamente em Nova York e na Georgia, o que nos dói é o fato de termos perdido um direito que julgávamos ser nosso.''

        Algo foi roubado também dos mortos, por mais estranho que isso possa parecer. Um funeral - exatamente como as cerimônias do nascimento e do casamento - significa que uma pessoa pertence a algum lugar, uma espécie de definição do ser humano. Pensemos no memorial, nos encontros para lembrar uma pessoa, no qual uma vida é recriada oralmente com lembranças de amigos e familiares, daqueles que formaram a comunidade do morto. ''Isso representa a ocasião mais importante na vida de uma pessoa, na qual toda a vida social é reconstituída'', diz o professor Pollock.

        No mínimo, os rituais funerários dizem aos vivos como continuar vivendo num mundo mudado. ''Ao fazer um rito funerário socialmente regimentado, podemos passar por essa transição de forma ordeira'', afirma Andrew Chamberlain, arqueólogo da Universidade de Shefield, na Inglaterra. ''Por isso é importante que estes ritos sejam respeitados. É para produzir ordem num momento de incerteza e de mudança.''

 

Fonte: O Estado de São Paulo






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