A vida é
como um contrato que estabelece a própria vigência em uma das cláusulas. Ou
seja, basta estar vivo para estar sujeito às leis da existência, que
determinam o seu próprio término. Lutar contra esse fato inelutável é
garantia de dor. Ao contrário, aceitar a transitoriedade da condição humana
– que se aplica a você, a mim e a mais seis bilhões de indivíduos – ajuda
a aliviar o sofrimento que a idéia da morte costuma trazer. Você não pode
mudar o fato de que vai acabar um dia. Mas você pode mudar o modo como se
relaciona com esse fato. Em certas ordens religiosas católicas, os monges, ao
se encontrarem nos corredores do mosteiro, costumam dizer uns aos outros: ''Memento
mori'', uma expressão latina que significa ''lembre-se de que vai morrer''.
A saudação – que é o contraponto de ''Carpe diem'' (''aproveite o
dia'') – funciona como um exercício espiritual de aceitação gradual e diária
da morte, vendo-a como uma conseqüência da própria vida e também de preparação
para o momento em que ela acontecer.
O contrário disso é o culto ao ego, ao
''pequeno eu'' que há dentro de cada um de nós, manifestado na não-aceitação
do curso natural dos acontecimentos, quando ele não ocorre como gostaríamos. E
que está presente no indivíduo que tenta se colocar sempre acima do todo a que
pertence. Ao não conseguir fazê-lo, esse ''eu'' sofre exagerada e
desnecessariamente para aceitar a parte que lhe cabe. Na vida, quanto mais você
está centrado em si mesmo, sem compartilhar suas alegrias e suas frustrações
com os outros, mais você sofre com a ausência de solidariedade, com o
isolamento que impõe a si mesmo, com a falsa idéia de que está desamparado.
Na morte, acontece a mesma coisa. Quanto menos você compartilha a sua dor – e
o sofrimento é um dos elos fundamentais da humanidade –, mais insuportável
ela se torna.
As perdas que você acumula ao longo da
vida podem tanto potencializar o seu medo da morte quanto ensiná-lo a conviver
melhor com a finitude. ''Vivemos pequenas perdas todos os dias. Uma separação,
uma demissão, a morte de um amigo, a notícia de uma doença incurável'', diz
a psicóloga Maria Helena Bromberg, coordenadora do Laboratório de Estudos e
Intervenções sobre Luto (Lelu), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de
São Paulo. ''Essas experiências cotidianas de morte nos ajudam a entender que
nada dura para sempre. Inclusive nós, em nossa natureza mortal.''
Uma história antiga ajuda a entender
melhor esse processo de pequenas aprendizagens – e como muitos de nós o
ignoram. Um dia, há muito tempo, um homem resolveu fazer um trato com a Morte.
Prometeu a ela que não ofereceria resistência quando sua hora chegasse. Mas
pediu, em troca, que fosse avisado com antecedência porque queria ter tempo
suficiente para terminar todas as suas tarefas. O acordo foi feito. Tempos
depois, houve um acidente grave na cidade e muitos amigos do homem morreram.
Anos mais tarde, um vizinho próximo faleceu. Em seguida, foi a vez de um tio.
Até que o homem ficou doente e, em alguns meses, encontrou-se com a Morte. Ela
tinha vindo buscá-lo. Revoltado, reclamou: ''Eu pedi que você me avisasse
quando viria e não recebi um sinal!'' Ao que a Morte respondeu: ''A morte dos
seus amigos, do seu vizinho, do seu tio não bastaram?''
Para quem busca na filosofia maneiras de
lidar melhor com a morte, as reflexões finais do filósofo grego Sócrates –
condenado a tomar cicuta, um veneno letal –, realizadas no século V a.C.,
representam um excelente exercício de aceitação. ''Porque morrer é uma ou
outra destas duas coisas. Ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência,
nenhuma consciência do que quer que seja. Ou, como se diz, a morte é
precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração deste
lugar para outro'', afirmou Sócrates. Em outras palavras: para quem não
acredita na continuação da vida, a morte é o nada, é a ausência completa de
angústias e desesperos, é o fim das aflições. E para quem acredita na
continuação da vida, a morte é a passagem desta existência para outra
melhor. De qualquer modo, a dor estaria na vida e não na morte. Quando chegou o
momento de beber o veneno, Sócrates disse a seus discípulos, numa última lição:
''Mas já é hora de irmos: eu para a morte e vocês para viverem. Mas quem vai
para melhor sorte é segredo, exceto para Deus.''
Fonte:Superinteressante
Fevereiro/2002
|