A Revista de
Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (n. 206, p.376-80,
jun. 2001) publicou interessante e oportuno acórdão de sua 20ª Câmara
Cível, datado de 25 de abril de 2001, apreciando matéria de direito
funerário, que mostra que este direito, ao contrário do que parece, não é
desconhecido, tendo o Tribunal enfrentado corretamente a questão.
Na Ap. Cível n.
70002434710, a 20ª Câmara Cível do Tribunal gaúcho assentou que:
Direitos a ser sepultado, a permanecer sepultado, à sepultura e a sepultar.
''O ius
sepulchri pertence à esfera própria à dignidade humana e transpõe a mera
qualificação de direito público. Distinção entre direito a ser sepultado e
direito de sepultar, sendo este último titularizado pelo Estado. Demanda que
cuida, todavia, do direito a ser sepultado. Critério de divisão de
competência no Tribunal de Justiça estabelecido com base no Direito Público,
que permeia a atualização estatal, e não a todo e qualquer direito que se
possa deixar de classificar como estritamente privado. Competência afirmada.
Direitos a receber exéquias, a ser sepultado e a permanecer sepultado, que não
se compadecem com defesa de mercado''.
Legislação do
Município de Porto Alegre criou a Central de Atendimento Funerário, órgão
que se encarrega de controlar a realização de sepultamentos no
Município, condicionando a sua realização por funerárias credenciadas junto
ao Poder Público municipal.
No caso concreto
examinado, esse órgão não liberava o cadáver da mãe de Gerson Luiz
Vasconcellos porque a funerária contratada para a realização das
exéquias não era uma das credenciadas. Foi concedida liminar para que o filho
pudesse sepultar sua mãe e depois a sentença confirmou tal orientação.
Apelou a referida Central, argumentando estar agindo no interesse da
comunidade e de acordo com a lei que regula a matéria. Contudo, o Tribunal,
acolhendo a inicial, reconheceu o direito da família na escolha dos serviços
funerários.
Deve uma viúva sem
filhos casar-se com o irmão do falecido marido? O Levítico diz que não (Lv.
20, 21); O Deuteronômio diz que sim (Dt., 25,5). Duas orientações do direito
hebreu para o mesmo problema. Portanto, a lei nem sempre consegue solucionar os
problemas.
Mas, em relação
ao direito de sepultar não há divergência: a regra geral é de que esse
direito pertence, em primeiro lugar, aos descendentes. Nesse sentido os textos
sagrados não discrepam: ''O sepultamento é o dever por excelência dos filhos
do falecido'' (Gn 25, 8 ss.; 35, 29; 50, 12 s.; Tb 4,3 s.; 6,15; 14, 10 ss.).
O direito/dever de
sepultar só se transfere ao Poder Público quando o falecido não tiver
familiares ou, em os tendo, estes não exercem esse sagrado direito e descumprem
seus deveres, ou então, em casos de epidemia, de falecimento decorrente de
doença de que a ciência necessite investigar, etc.
O direito de ser
sepultado é um direito personalíssimo de cada indivíduo que, com sua morte,
é exercitado pelos familiares. Ademais, o objeto central do direito funerário,
é justamente o culto aos antepassados o que impõe um tratamento digno do
cadáver humano, do corpo humano inanimado. Este, como é assente, regula-se
pelas disposições civis.
É verdade que
alguns autores acreditam que o atraso no estudo do direito funerário
decorre dos julgamentos civis de suas questões, já que surgem quase sempre em
questões sucessórias. Mas essa maneira de ver é simplista porque o direito
funerário é direito ubíquo, não podendo ser reduzido a exame de questões
isoladas sobre o cadáver, sobre sepulturas, sobre polícia funerária, etc. Por
isso dissemos que direito funerário é o sistema de normas e princípios
ético-sociais que organiza e disciplina as relações jurídicas
decorrentes da morte da pessoa natural que se estabelecem entre pessoas e em
relação a determinados lugares destinados aos mortos, com vista a
preservação da memória dos antepassados (Tratado de direito funerário, I,
62).
Ensina Benjamin
Villegas Basavilbaso que os cortejos fúnebres ''son actos civiles. No obstante,
pueden tener carácter religioso, y, por lo tanto, ser considerados como acto
cultual, cuando son acompañados de cánticos religiosos y presididos por
sacerdotes o prelados. En estos supuestos, la libertad de cultos, sin perjuicio
de la jurisdicción municipal, no puede ser desconocida'' (Derecho
administrativo, V, 457).
De qualquer sorte,
deve-se ter sempre presente a recomendação de Wilhelm von Humboldt: ''Creio,
pois, que não faz falta aduzir outros argumentos para justificar o princípio,
em si mesmo nada novo, de que tudo aquilo que tem que ver com a religião
encontra-se fora do âmbito de actuação do Estado e que tanto os pregadores
como o culto em geral são instituições das comunidades que devem ficar à
margem dum controlo especial por parte do Estado'' ( Os limites da acção do
Estado, 79).
Portanto, digna de
aplausos a decisão da 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça gaúcho que
soube aplicar corretamente os princípios fundamentais do direito funerário, o
mais antigo de todos os direitos e o mais novo a ser valorado.
Justino Adriano Farias da Silva, doutor em Direito;
professor de Direito
Civil na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Fonte: Revista Panorama da Justiça - Ano IV - nº 33