No dia 2 de novembro, muita gente visita cemitérios e presta homenagem a seus falecidos. A sociedade tecnocrata tem dificuldade de compreender para que lembrar quem já morreu. No 31 de outubro, nos países anglo-saxônicos, comemora-se o Halloween, ''dia das bruxas'': as pessoas vestem-se de fantasmas, mas não levam a sério a comunhão com os defuntos. Livros e filmes de vampiros misturam mortos e vivos e alimentam o terror do sobrenatural. Mas desvalorizam a vida. Quando a vida é desumanizada, a morte também perde o seu sentido, a sua sacralidade.
Nas culturas tradicionais, vela-se o defunto em casa, em um cerimonial de convivência. As pessoas cantam e há comida para os que passam a noite. Nas sociedades modernas e principalmente nos grandes centros urbanos, prefere-se pagar uma capela de cemitério e reduzir o velório ao tempo mínimo. A morte é disfarçada. Como não levam a morte a sério, as pessoas são facilmente empurradas para a violência e o desrespeito à vida. Cada vez mais, como dizia Guimarães Rosa: ''Viver é muito perigoso''.
As culturas indígenas insistem na unidade e integração entre o mundo dos vivos e a influência dos mortos e antepassados no clã. Os vivos convivem com os seus mortos. A morte é algo positivo. No universo, há um equilíbrio de vida e morte. A morte é uma invenção sábia da vida para que ela possa permitir à pessoa emergir no universal.
A morte humaniza a vida porque revela que somos criaturas limitadas. Fugir da questão da morte é não assumir os próprios limites e os dos outros. A vida não é apenas biológica, nem a morte acidente de percurso. Como diz a Bíblia: ''Para todas as coisas, há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de morrer'' (Ecl 3). Rubem Alves compara a vida com uma sinfonia na qual a morte é o último acorde. Como se a morte dissesse: ''É pena, mas está completo. Para que seja belo, é preciso que agora acabe''.
A morte faz parte da vida. A gente começa a morrer no dia em que nasce. A ciência concorda com essa sabedoria antiga. Desde a concepção, o programa genético de cada pessoa (o DNA) já determinaria o seu tempo de vida, desde que não haja acidente de percursos. O mundo de hoje, no entanto, educa-nos a não nos preparar para a morte.
As religiões e culturas tradicionais têm a função de nos revelar: Deus nos criou para a vida digna e plena. Agradar a Deus é defender a vida: a própria, a dos outros e a do universo. Lutar pela vida, contra a dor e a destruição, inclui a sabedoria de acolher a irmã morte quando, de algum modo, ela nos vem.
A morte é sempre triste. Mas as religiões vêem caminhos para além da morte. Muitos crêem na reencarnação. Os cristãos proclamam a ressurreição. Essa esperança muda a forma de encarar a morte.
Se não morrêssemos, não viveríamos da mesma maneira. A maneira como a sociedade se organiza diante da morte está estreitamente ligada ao modo como ela organiza a vida. Na sociedade ocidental, diante de um morto a gente pensa: ''De que morreu?''. Nas tradicionais, a pergunta é ''por que morreu?''. Através dela, o grupo se põe a questão da sua responsabilidade, expressa o sentimento de culpa. Viver e morrer não são atos vividos no isolamento.
Celebrar um dia em memória de nossos falecidos pode nos ajudar a conviver de forma mais humana com nossas raízes. Independentemente da tradição religiosa, a memória dos mortos refará ''a aliança das gerações'', capaz de garantir a paz e a sobrevivência harmoniosa da humanidade.