Não há respostas simples sobre como lidar com a morte. Teólogos,
filósofos, místicos e consoladores de todos os matizes tentaram ao longo dos
séculos aliviar essa carga que se instala sobre os ombros de cada um a partir
daquele instante, na infância, em que se descobre a inevitabilidade da morte. A
americana Jill Brooke, de 42 anos, fez sua tentativa com o livro ''Don't Let
Death Ruin Your Life''(Não Deixe a Morte Arruinar Sua Vida), ainda sem
tradução para o português. O relato de Brooke está há semanas na lista de
livros mais vendidos nos Estados Unidos. Órfã de pai desde os 16 anos criada
na religião judaica e dona de uma carreira que inclui credenciais no
canal de televisão CNN e no jornal New York Post, há quase três anos Brooke
viu a morte passar por perto. Numa ambulância, levada às pressas para o
hospital para tratar de uma gravidez de risco, ela perdeu litros de sangue e o
bebê que teria sido seu segundo filho. A tragédia deu vida a um novo projeto.
Brooke afastou-se das redações durante dois anos para mergulhar num tema, o
fim da vida, que tivera até então, fora do âmbito religioso, raras
abordagens, se é que isso é mesmo possível, positivas.
Jill Brooke fez uma longa pesquisa histórica e descobriu que muitos
personagens que hoje são lembrados como líderes, vencedores, revolucionários
e inovadores tiveram em comum o fato de enfrentar a morte de um ou dos dois pais
ainda na infância.''Reagir com bravura diante do inevitável é um traço de
caráter muito interessante.Para muitas personalidades pode ter sido essa a
alavanca que as impulsionou em busca da glória e das grandes realizações'',
diz Brooke.Ela encontrou esse tipo de atitude em personagens que vão do
conquistador macedônico Alexandre, o Grande(356-323 a.C.) ao ex-beatle Paul
McCartney. Rastreou a marca da tragédia seguida de uma vida intensa e
competitiva no filósofo Francis Bacon(1561-1626) e em guerreiros como Napoleão
Bonaparte e Simon Bolívar, nas primeiras-damas dominadoras Eleanor Roosevelt e
Eva Perón e em homens públicos movidos pela ambição, como o ex-presidente
americano Bill Clinton e o magnata da imprensa Rupert Murdoch.''Perder o pai ou
a mãe na infância, felizmente, é uma experiência rara mesmo em tempos de
guerra'', constatou a autora. A taxa média nas sociedades ocidentais é de 15
%. Nas grandes guerras do século passado, as vítimas militares eram jovens que
em sua maioria ainda não tinham tido tempo de ser pais. Como o evento é raro,
sustenta ela, acaba deixando marcas indeléveis na personalidade de quem passa
por ele. ''Não entendo como em nenhum livro sobre Abraham Lincoln os
historiadores dão à orfandade o peso que ela teve na formação da
personalidade do maior presidente americano. Ora, a primeira linha de sua
autobiografia diz:''Nasci no Kentucky.Minha mãe morreu quando eu tinha 9
anos'', observa Jill Brooke.
Obviamente,quando se estuda a vida dos grandes homens, é fácil encontrar
paralelos. Vidas extraordinárias já foram agrupadas pelas mais distintas
características que tiveram em comum. Das mais singelas - o sujeito era destro
ou canhoto, por exemplo - às mais complexas, como os estudos que agrupam os
grandes homens pela sua condição de adúltero ou pela preferência
sexual. Um pesquisador americano famoso, Frank Sulloway, chegou a sugerir há
alguns anos que até a ordem de nascimento seria decisiva na formação do tipo
de personalidade de cada um. Sulloway sustenta que primogênitos ou filhos
únicos tendem a ser mais conservadores e obedientes. Os caçulas e os filhos do
meio seriam propensos a levar a vida menos a sério. O mérito de Jill Brooke é
não ter mirado uma explicação global para o fenômeno da personalidade
baseando-se no trauma da morte de parentes. Ela diz apenas que a morte de um pai
é uma variável quase tão significativa quanto a educação, a classe social
ou a religião na qual uma pessoa foi criada. ''Crianças órfãs são forçadas
a ser muito mais introspectivas e a examinar os mistérios da vida trazidos pela
morte num período da vida em que seus colegas lidam apenas com as questões
mais brandas, típicas da idade'', diz Brooke. Ela concluiu que nem sempre essas
experiências são prejudiciais. Ao contrário ''a capacidade de tolerância e
resistências dessas crianças é enorme e suas perspectivas de vida
tendem a ser mais amplas que as das pessoas que nunca passaram por dores
ou tristezas profundas'', explica a autora.
Uma pesquisa da Universidade Columbia sugere que as crianças que passaram
pelo trauma da morte de parentes próximos podem ser classificados em dois
grupos. No primeiro, ficam as que realmente se vergam ao peso da dor. Elas se
entregam. Suas frágeis estruturas emocionais são destruídas pela fatalidade e
elas nunca se tornam adultos normais. Num segundo grupo estão aquelas que a
experiência da morte ao seu redor imuniza para as dificuldades da vida,
tornando-as mais equipadas para perseguir objetivos extraordinários para o bem
ou para o mal. Brooke lembra que os ditadores Adolf Hitler, Josef Stalin
ou o sérvio Slobodan Milosevic, que teve pai e mãe suicidas, foram órfãos
que poderiam ser classificados num terceiro grupo - dos que se deixaram consumir
pela amargura da perda e, por isso, tornaram-se frios e indiferentes ao
sofrimento dos outros. ''Não podemos generalizar, mas
experiências-padrão na infância geram um tipo de comportamento no
futuro que podemos agora começar a entender'', diz ela.''Uma das
conseqüências mais comuns para essa criança é o fato de desenvolverem mais
aguçadamente do que outras o raciocínio abstrato''.
Abstraindo o ambiente social e o período histórico dos personagens cuja
biografia estudou, Jill Brooke encontrou em diversos artistas órfãos a mesma
obsessão pelo ente querido perdido. Quando a mãe de Paul McCartney morreu, o
pai deu-lhe um violão para tentar aliviar seu sofrimento. Mais tarde ele
compôs a famosa canção Let it Be, em que a mãe é personagem sempre
presente lhe trazendo proteção e sabedoria. No caso de John Lennon, que
também perdeu a mãe muito cedo, as letras de suas músicas foram chamuscadas
pela raiva e pela revolta pelo isolamento. Mas o motivo, segundo Brooke é
outro. Lennon foi abandonado pela mãe e criado pelos tios. Outro exemplo de
grandeza motivada em parte pelo amor à mãe perdida na infância é o escultor
e pintor italiano Michelangelo, autor de obras eternas, como o teto da Capela
Sistina e a escultura de Davi, em Florença.
São inúmeros os fatores que definem se uma experiência traumática
de morte na família vai formar ou deformar a personalidade da criança.
Como era de esperar, a pesquisa da americana mostra que o pior efeito vem de
lares nos quais a morte de um dos pais ou de ambos joga as crianças na pobreza.
''Sem um mecanismo de apoio que garanta qualidade de vida e mesmo padrão
econômico, as crianças vão sofrer mais do que deveriam'', diz ela. A morte
dos pais é algo doloroso, mas o suicídio de um parente jovem ou a perda de um
filho são considerados em todos os círculos as formas mais agonizantes e
debilitantes de luto. No primeiro caso, segundo Brooke, a melhor tábua de
salvação é mesmo a terapia. Além de violar a ordem natural das coisas, a
perda de um filho costuma aumentar o atrito entre os casais, culminando, muitas
vezes em divórcio. Isso porque homens e mulheres vivenciam o luto de forma
diferente. As mulheres fazem suas amizades mais baseadas na emoção. Já os
homens tendem a se agrupar em torno de atividades comuns, como esportes. Na
explicação da autora, os homens compartilham menos seus sentimentos. Por isso,
têm maior dificuldade de lidar com a agonia da perda do filho. Esse
comportamento pode levar a mulher a achar que o marido não está sofrendo tanto
como ela. ''É vital que o casal lembre que está no mesmo barco. Mesmo que os
dois estejam remando em velocidades diferentes, ambos devem remar na mesma
direção'', aconselha Brooke.
Tania Menai
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