A escatologia islâmica admite um juízo post mortem,
quando o espírito do falecido deve confessar diante dos seus dois anjos da
guarda ( Muntar e Nakir) que “Deus é Deus e Maomé é o seu profeta”. Só
depois poderá repousar no sepulcro até a ressurreição.
Clinton Bennett, escrevendo sobre a morte no islamismo, para a obra Ritos de passagem, de Jean Holm e John Bowker, nos
fornece os seguintes dados sobre esta cultura:
Os
muçulmanos acreditam na vida para além da morte, na ressurreição do corpo e
no dia do Juízo Final. Consultando-se qualquer um dos seus textos sagrados já
vemos o quanto essas convicções são profundas.O Alcorão diz que todos os que
se rebelarem contra Deus serão punidos, ao passo que os que vivem em harmonia
com a sua vontade, nada tem a temer. Fornece-nos ainda descrições bastante vívidas
sobre o céu e o inferno. No céu, os crentes reunir-se-ão aos entes queridos,
mas o prêmio mais significativo
será o de poderem compartilhar a harmonia (tawhïd) com Deus. Os muçulmanos
sabem que, se observarem seus deveres obrigatórios (os cinco pilares do Islão),
se as suas vidas forem boas, em conformidade com as sharï ah, se e sempre que
tendo agido mal, se arrependerem (tawbah – regressado a Deus), Alá os brindará
com a mesma dose de misericórdia com que brindou Adão. “Sabem igualmente bem
que, a menos que acompanhada do
mais genuíno niyyah (intenção), longe do egoísmo da salvação pessoal, da
farsa de tentar parecer piedoso aos olhos dos outros quando apenas se está a
servir Deus na tentativa de alcançar proveitos pessoais, o simples cumprimento
externo das regras não tem qualquer valor”.
Os
muçulmanos acreditam que, à semelhança do que acontece com o nascimento, também
a morte está nas mãos de Deus. Foi Alá quem te criou, quem te sustentou, e é
ele quem te fará morrer (sürah 30:40); Ele[...] criou-te a partir do barro e
decretou um limite para tua existência (sürah 6:2). Tendo em vista que só
muito raramente as pessoas conhecem com antecedência a hora de sua morte,
qualquer bom muçulmano deverá estar preparado para abandonar este mundo de um
momento para o outro, a qualquer momento. Os muçulmanos acreditam que os mortos
dormem até a hora da ressurreição, se bem que Maomé tenha afirmado que, logo
após o funeral, dois anjos dirigem-se ao túmulo e perguntam: Que tens a dizer a
respeito de Maomé? E a tradição continua: Se o morto for um crente de
verdade, dirá: “Pela minha honra, afirmo tratar-se do mensageiro de Deus. Então,
os anjos retorquem: “Olha agora para o lugar que ocuparias no inferno. Em
troca dele, Deus ofereceu-te assento no céu”, ou vice versa. “Quando um muçulmano
está às portas da morte, é de costume os amigos reunirem-se à sua volta e
recitarem o shahãdah, para que as últimas palavras escutadas pelo moribundo
sejam esta oração contra o Demônio, esta afirmação de que não existe outro
Deus para além de Deus , que a sua vontade é soberana, e que só ele é real.
Da mesma forma que se entra no mundo a escutar o nome de Deus, assim os indivíduos
se despedem dele. É igualmente provável que se proceda à recitação de vários
versículos do Corão, talvez os “seta salãms” (sete versículos contendo a
palavra árabe de paz). Os sürahs 13 e 36 também são apropriados. O sürah 13
promete o paraíso aos que derem ouvidos à mensagem de Maomé, que se mostraram
“perseverantes, não recearam seguir as instruções divinas e nunca se
esqueceram de rezar” (v.22), ao mesmo tempo que alerta os infiéis para o
castigo que os espera. O outro sürah contém um versículo deveras
significativo: “Mas quando Ele quer uma coisa, a Sua vontade é suprema.
Basta-lhe dizer ‘Faça-se’! para que isso aconteça” foi a palavra ( kalãm,
muitas vezes identificada com o próprio Corão) de Deus que criou o universo.
É a mesma palavra que ordenará aos mortos que se levantem no dia do Juízo
Final ( conferir com o sürah 40:68: “É Ele quem chama e dá a morte. Quando
Ele quer uma coisa, basta-lhe dizer ‘Faça-se’!, e isso acontece”).
Com
relação à preparação do corpo morto, para os rituais fúnebres, diz:
Pela
tradição, os muçulmanos são sepultados no próprio dia do falecimento, de
preferência antes do pôr do Sol. Entretanto, principalmente nos países não
muçulmanos, é com freqüência que se torna impossível agir assim, já que
existe uma série de formalidades legais a cumprir, encontrando-se estas
relacionadas com os horários dos cemitérios e a emissão das certidões de óbito.
Logo a seguir à morte, familiares e amigos pertencentes ao mesmo sexo do
falecido despem o cadáver e encarregam-se de o lavar, começando pelo lado
direito. Esta espécie de lavagem ritual repete-se três a cinco vezes. Esta
cerimônia, conhecida por ghusl, antecede o salah e visa obter para o corpo o
mesmo estado de pureza que a alma, especialmente para a preparação em vista da
ressurreição. “Os orifícios físicos são tapados com algodão, e o cadáver
, incluindo a cabeça, é coberto com um sudário branco. Se o morto for do sexo
feminino, o cabelo deverá ser apanhado numa trança. Antes de se proceder à sua
colocação no catre, o corpo é perfumado com cânfora. O morto deverá estar
apoiado do lado direito, por forma a o rosto ficar voltado para a qiblah (Meca).”
Este
ritual pode sofrer modificações em duas circunstâncias:
1º)
Caso a pessoa tenha morrido enquanto mártir da causa islâmica, sem que se
proceda ao ghusl ( apenas lhe serão tiradas as jóias ). Os mártires islâmicos
morrem durante a jihãd, ou seja, a guerra justa e legítima declarada por quem
de direito, com vista à defesa do território muçulmano, ou, mais raramente,
contra qualquer tipo de injustiça praticada noutra parte do mundo. Nos primórdios
do Império Muçulmano, também conhecido por Califado ( os Khaljahs sucederam a
Maomé na liderança de ummah ), era possível declarar a jihãd no intuito de
alargar a área de influência da sharí ah, isto desde que as condições
fossem propícias ao sucesso. Segundo o Alcorão, mártires seguem imediatamente
para o Paraíso: Aquele que morra a combater por Alá, tenha ele ganho ou
perdido, receberá uma vasta recompensa ( sürah 4:74 ).
2º)
Outra hipótese susceptível de alterar o ritual da preparação do corpo,
verifica-se quando o indivíduo morre durante o hajj, peregrinação a Meca (quinto pilar do Islão), ou na “peregrinação menor”, o ‘umrah. Tanto o
hajj como o ‘umrah só podem ser levados a cabo no estado de pureza ritual
conhecido como ihrãm (consagração), quando, depois de se terem banhado e
procedido a recitação das orações apropriadas, os homens se envolvem em dois
mantos brancos sem costura (contudo, as mulheres continuam a usar as mesmas
roupas de sempre). “Assim, caso um muçulmano morra em estado de ihrãm,
encontra-se já purificado. O corpo continuará a ser lavado, talvez apenas uma
única vez, mas ser-lhe-ão vestidas as mesma roupas, não havendo necessidade
de lhe cobrir a cabeça. Hoje em dia, o número de crentes que se desloca a Meca
é de tal forma elevado, que é comum ocorrerem bastantes mortos durante a viagem,
sobretudo entre os peregrinos mais velhos, incapazes de suportar o calor. Akbar
S.. AHMED dá-nos a seguinte explicação: “Neste caso, a morte é bem-vinda.
Trata-se de um atalho para o Paraíso. De facto, são muitos peregrinos idosos e
doentes que efetuam a viagem a Meca com este intuito. O calor, as multidões, o
esforço, tudo leva a que se percam de mil a duas mil vidas durante o hajj”(AHMED
1991:145 ). Claro que, nesta passagem, AHMED se está a referir à crença
popular que afirma que morrer durante o hajj, à semelhança de morrer como mártir,
abre imediatamente as portas do Paraíso”.
Um
tipo de ritual fúnebre especial é o janãzah:
É
comum as orações fúnebres serem ditas na mesquita, imediatamente a seguir às
orações salah, se bem que, neste campo, os costumes locais impliquem alguma
variação. Por vezes, dá-se preferência ao átrio da mesquita. O caixão
deverá ser acompanhado pelos familiares e amigos do morto, ocupados a recitar o
shahadah en route. O percurso até o cemitério deverá ser feito a pé, exceto
se a distância for muito grande. Antes de dar início ao funeral, compete aos
que estão de luto expressar o seu niyyah ( intenção ), servindo-se para isso
da fórmula usual: “Estou aqui para dirigir a Deus esta oração, e faço-o
com maior das sinceridades”. Em seguida, procede-se à récita do Subhãn:
Louvado sejas Tu, oh, Deus,
Santificado sejas,
Grande é o Teu nome,
Grande é Teu poder,
Grande é a Tua Benção,
Não existe outro Deus para além de Ti.
Ao
takbïr segue-se o du’ã ( a prece dos suplicantes ), onde é costume invocar
bênção a Maomé:
Oh, Deus, tem piedade de Maomé e dos seus descendentes, da mesma forma
que concedeste misericórdia e paz, bênçãos, compaixão e bondade a Abraão e
os seus descendentes. Que Teu nome e grandeza sejam louvados. Oh, Deus, abençoa
Maomé e os seus descendentes, da mesma forma que abençoaste e mostraste
compaixão por Abraão e os seus descendentes.
Continua
Clinton Bennett: “Conhecida como Qunut, esta prece deverá ser murmurada. Existe ainda a hipótese de se usar um
outro du’ ã, talvez dito de forma espontânea. Antecedida por um outro Allãhu
Akbar, esta litania deverá ser repetida mais de duas vezes. É provável que o
terceiro du’a seja uma oração pedindo a felicidade do que morreu. Depois de
mais um takbïr, os presentes trocarão entre si o tradicional cumprimento muçulmano
de ‘ A paz esteja convosco’ ( As sãlamu-‘alaykum ) aos que se encontrem
à sua esquerda e à sua direita. Por vezes, os parentes e amigos do falecido
dirigem-se à pessoa a quem a morta mais afetou, e dizem: ‘Cumpriu-se a
vontade de Deus’. A resposta tradicional a esta frase é a seguinte: ‘A
vontade de Deus deixou-me satisfeita(o).’ De seguida, é provável que ela
diga: ‘Podem partir’.
“É
considerado apropriado que todos os que participaram nas orações acompanhem a
procissão fúnebre até junto à sepultura. Aí, o caixão será colocado na
cova ( a primeira parte a descer será a inferior ) ao som das seguintes
palavras: “Em nome de Deus, pela graça de Deus e de acordo com sunnah do
Profeta”. Ou ainda: “A terra te entregamos, em nome de Deus e da religião
do Profeta”. É provável que se acrescente uma forma corânica bastante
semelhante à que os Cristãos usam nesta altura: “Da terra foste criado e à
terra regressarás, até ao dia em que voltares a sair” ( sürah 20:55 ).
Esta
fórmula deverá ser recitada à medida que o caixão vai sendo coberto de
terra. Por último, e antes de abandonarem o cemitério, os presentes talvez
digam o Fãtihah, que costuma ser repetido quando todos se encontram a uma distância
de quarenta passos do túmulo. A tradição diz que este é o momento que os
dois anjos, Munkir e Nakir, aparecem para revelar ao morto o destino que o
espera. Um costume deveras antigo era o de, passados três dias, se proceder à
contratação de vários qãri’ (eruditos treinados na arte de recitar o Corão)
para que declamassem todo o texto sagrado junto à sepultura. É sempre necessário
mais do que um qãri’, pois, e de acordo com as regras da récita (tajwïd),
demora quarenta dias a recitar o Corão na totalidade. Contudo, este prazo pode
ser encurtado para três quando o texto é dividido em fases. Quarenta dias
depois do enterro, é prática corrente, familiares e amigos reunirem-se para
lembrar o morto, proceder à oferta de preces e ler excertos do Corão.”
Justino
Adriano Farias da Silva
Dados
retirados do Livro Tratado
de Direito Funerário