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Ritual: Os fieis vestem-se de branco
nas sessões e costumam deixar bilhetes com pedidos de cura na estátua de Frei
Luiz
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Quem conta o caso é o médico Ronaldo Gazolla, há nove anos secretário
municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Recém-empossado no cargo, Gazolla saía
para uma reunião com Opositores da administração municipal - o presidente
era Marcello Alencar, então no PDT, que depois seria eleito governador pelo PSDB
-, quando a secretária o avisou: um amigo insistia em falar-lhe ao telefone,
alegando tratar-se de assunto urgente. Gazolla atendeu e ouviu, do outro lado da
linha, a voz de um homem aparentemente idoso que lhe recomendava cuidado. Não
era o momento de enfrentar ninguém, convinha agir cautelosamente. O secretário
segui o conselho. Ex-ateu e, em outros tempos, materialista convicto, Gazolla
acha que conversou com o espírito de Frei Luiz, religioso falecido em 1937.
Alemão, o frade Theodoro Reinke ficou conhecido como Frei Luiz em Petrópolis,
na região serrana fluminense. Dirigiu por 30 anos uma obra social e
inspirou a criação do Centro Espírita Lar Frei Luiz, que ocupa um complexo de
prédios em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio. Reúne 800 médiuns e recebe 3 mil
frequentadores a cada sessão diária. Gazolla acumula ao cargo de secretário a
presidência do Lar. É um caso raro na administração municipal: ele conseguiu
atravessar três governos no posto - o de Alencar e os de seus sucessores, Cesar
Maia e Luiz Paulo Conde. "Os espíritos me ajudam muito", acredita.
Vangloria-se de ter, em menos de dez anos, multiplicado o orçamento de sua
secretária por cinco, incorporado à rede municipal 27 unidades federais e
instituído ganhos por produtividade entre os funcionários. Nada disso teria
ocorrido, ressalva, sem a ajuda "do alto".
No mundo real , essa espécie de socorro o teria levado à identificação do
enfermeiro Edson Isidoro, acusado de, em 1999, assassinar pacientes no Hospital
Municipal Salgado Filho para ganhar comissões de casas funerárias. O secretário,
alertado por uma entidade espiritual, ligou para o diretor do hospital e
descreveu o responsável pelas mortes suspeitas na unidade. Só depois disso o
enfermeiro foi preso.
Esses acontecimentos fantásticos relatados pelo cirurgião que executa a
política de saúde do Rio - cidade de 5,5 milhões de habitantes e a mais visitada
por turistas estrangeiros no país - são conhecidos pelo Conselho Regional de
Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj). Até agora, ninguém recorreu ao
Conselho contra as atividades do Lar, informa seu presidente, Abdu Kexfe. Ele
acompanha a dupla jornada do secretário municipal e alega não ter sido
informado
de qualquer fato que possa desaboná-lo profissionalmente. "Se houver algum médico
envolvido em problemas no Lar de Frei Luiz, apuraremos os fatos", diz. "Até hoje, não recebemos nenhuma queixa."
Gazolla é um homem seguro. Os dois mundos, o racional e o espiritual,
convivem sem conflito na figura sóbria e energética desse mineiro de 65 anos.
Ele tanto se dedica à compra de equipamentos para os hospitais da rede pública
quanto encontra tempo para atuar como assistente nos tratamentos espirituais do
centro. "O Lar não é pátio de milagres", avisa o secretário. "Ninguém cura
ninguém, quem cura é Deus, se a pessoa quiser e merecer. A doença mais
importante não é a material, é a do espírito."
A advertência é pertinente. No Lar, segundo testemunhas,
o médium Ivan de Castro "materializa espíritos" e o mecânico de carros Gilberto
Arruda "incorpora" o alemão Frederik von Stein em cenas que remetem ao lendário
Dr. Fritz, suposto espírito de um médico alemão capaz de curar doenças graves.
"Quando Gilberto está incorporado, fala alemão fluentemente",afirma o jornalista
Roni Lima, autor do recém-lançado Médicos do Espaço - Luiz da Rocha Lima e o Lar de Frei
Luiz. O livro contém depoimentos como o de Joaquim Vicente
de Almeida, que em 1972 participou da retirada de um tumor da mulher, Dita.
Conforme o relato de Almeida, o médium abriu a pele Dita com
as mãos e pediu ao marido que extraísse o
tumor. "Não sei explicar a emoção, só via o tumor saindo à medida que eu o
tracionava", conta Almeida.
Descrições desse gênero atraem ao centro espírita, semanalmente, romarias de
aflitos. Mães carregam filhos doentes, ricos descem de carros importados,
famosos tornam-se humildes devotos. As consultas são gratuitas e o lugar vive de
doações. Ali se atende gente como a aposentada Neuza Correia Novelli, que há
dois meses busca se tratar de uma hepatite B. "Quando chego aqui, sinto uma
tranquilidade grande, uma paz de espírito", afirma.
O maestro Tom Jobim recorreu ao centro na tentativa de livrar-se de um tumor
na bexiga. O cantor e compositor Milton Nascimento buscou a cura do diabetes. O
ator Carlos Vereza virou diretor da entidade depois de recuperar a audição. A
cantora Elba Ramalho é frequentadora do Lar a seis anos. "Isto aqui é um
hospital espiritual", define. "Venho periodicamente para uma limpeza
preventiva". Cerca de 200 menores são mantidos pela entidade. Aprendem a fazer
pães e confeitos, recebem noções de artesanato e trabalham na gráfica.
O fundador da entidade, o médico Luiz da Rocha Lima, foi criticado ao comprar
o enorme terreno e erguer edifícios para receber os seguidores da Frei Luiz.
Agora, Gazolla, que comanda 120 unidades de atendimento no município, quer
inaugurar o Hospital Holístico Frei Luiz, num prédio a ser reformado. "Já tenho
interessados em fazer doações", garante, sem revelar a lista de filantropos.
Nesse novo centro de saúde, a medicina espiritual e a material conviveriam em
harmonia. Nos planos do secretário, os pacientes, examinados por doutores e
médiuns, receberão um prontuário duplo: além do histórico médico, terão o das
vidas passadas, que explicará as doenças do presente. "A fusão do espiritual e
do material é o caminho da medicina", diz Gazolla. Ele acredita nisso.
Revista Época