O Budismo se caracteriza por uma grande
variedade de tradições, escolas, doutrinas, ritos e costumes. As
considerações que se seguem, embora fundamentadas em
princípios doutrinários considerados fundamentais por todas as
escolas e ritos, se referem mais especificamente ao Budismo Japonês,
transplantado para o Brasil pelos imigrantes nipônicos. Os pormenores
doutrinários e ritualísticos nos remetem à
tradição sino-japonesa da Terra Pura e, especialmente, à
Verdadeira Escola da Terra Pura (Jôdo Shinshû), fundada no
Japão pelo Mestre Shinran (1173-1262).
Possa a meditação sobre
estes princípios e
a observância destes ritos nos libertar da prisão no ciclo dos
nascimentos e mortes e nos proporcionar a Perfeição da Sabedoria,
em conformidade com as aspirações, ratificadas pelo Budismo, dos
antigos sábios da Índia:
Conduze-me do irreal para o Real, das trevas para a Luz, da
morte para a Imortalidade.
Como uma religião gnóstica,
isto é, que propõe ao homem a libertação das trevas
da ignorância através da obtenção de uma Sabedoria Transcendente, o
Budismo equipara a vida presente na condição humana a uma
situação de "sono", "embriaguez",
"prisão" ou "exílio" nas trevas, motivada pela
ignorância que, desde um tempo imemorial, nos mantém inconscientes
de nossa verdadeira natureza, encadeados em um ciclo sem fim de nascimentos e
mortes. Esse "exílio nas trevas" é equiparado a uma
morte espiritual. Caso viermos a obter a Verdadeira Sabedoria, poderemos nos
libertar e recuperar nossa verdadeira condição, o Nirvana ou estado de perfeição espiritual além
dos nascimentos e mortes, simbolizado na Tradição da Terra Pura pelo
"ir-nascer" na Terra Pura ou Paraíso Ocidental de Amitabha, o
Buda da Luz e da Vida Infinitas. Nessa concepção, a morte
não é vista como algo oposto à vida, mas como parte de um
processo em que vida/morte são complementares, tais como as duas faces de
uma mesma folha de papel. Não podemos experimentar plenamente a vida se
não nos prepararmos para experimentar também a morte.
Há que estudar a morte e refletir sobre ela para
conhecer e respeitar integralmente a vida. Há que encarar a morte como
parte inevitável de nossas vidas, e não viver inconscientemente
nosso dia a dia, varrendo a morte para debaixo do tapete como se ela não
existisse.
Diferentemente das religiões monoteístas de base
abraâmica (Judaísmo, Cristianismo, Islão) não existe
no Budismo nenhum deus pessoal, ensina-se um conceito impessoal de Absoluto:
Existe, ó monges, um
não-nascido, um não-constituído, um não-feito, um
não-composto; se, ó monges, esse não-nascido, esse não-constituído,
esse não-feito, esse não-composto não existisse, não
haveria saída para fora do nascido, do constituído, do feito, do
composto. Mas, existindo um não-nascido, um
não-constituído, um não-feito, um não-composto,
existe uma saída para fora deste nascido, deste constituído, deste
feito, deste composto.
Dessa forma, no Budismo o homem não é julgado por
nenhum deus. Somos nós mesmos, através de nossos pensamentos,
palavras e atos, que forjamos nosso destino, que será bom ou mau de
acordo com o tipo de comportamento que tivermos. É a chamada Lei do
Karma ou das
Retribuições. Trata-se de uma lei impessoal que funciona com
precisão matemática, não há nenhum
"juiz" oculto por detrás da Lei. Pelas mesmas razões
verificamos que a idéia de ressurreição é totalmente
estranha ao Budismo.
Existem nos textos budistas várias
doutrinas sobre a vida póstuma. Alguns budistas, como os do Sudeste Asiático e do
Tibet, tendem a aceitá-las literalmente. No budismo Japonês,
porém, a tendência dominante é vê-las como
vestígios de uma mentalidade mitológica incompatível com o
pensamento moderno alicerçado na ciência. Procura-se, então,
desmitologizá-las, vendo-as
como meras metáforas a descrever os desvarios da consciência alienada, prisioneira da
ignorância, das paixões e do egoísmo. Segundo essas
crenças, de acordo com a supracitada Lei das Retribuições,
o falecido renascerá em uma condição feliz ou infeliz,
depois de um "estado intermediário" de 49 dias (ver abaixo o
item luto).
1ª - Nos mundos paradisíacos celestes dos Deuses e
dos Anjos (DEVAS);
2ª - No mundo dos fantasmas famintos (PRETAS);
3ª - No mundo dos titãs (ASURAS);
4ª - Nos mundos infernais;
5ª - Na condição humana;
6ª - Na condição animal.
Esses renascimentos não são
definitivos, são condições transitórias em que a
consciência transmigra por uma sucessão infinda de nascimentos e
mortes. A meta do budista seria escapar a esse ciclo vencendo a
ignorância, o egoísmo e a escravidão às
paixões, através da obtenção da sabedoria.
Atingiríamos então o Nirvana.
Assim, para os budistas, paraíso e inferno nada mais
são do que ilusões criadas pela consciência alienada, das
quais é necessário que nos desembaracemos o mais depressa
possível.
UMA PEDAGOGIA DA MORTE:
A partir dessas premissas, o Budismo
desenvolve uma verdadeira "pedagogia da morte", algo que o mundo
ocidental moderno, consumista e materialista, simplesmente desconhece. O primeiro passo consiste em reconhecer o
Princípio da Impermanência ou da transformação
incessante, a que todos os seres estão sujeitos, O ser humano não
é uma exceção. A partir da tomada de consciência da
Impermanência, há que cultivar o desprendimento, o desapego e o
altruísmo, fatores que enfraquecerão os laços nos
mantêm exilados nas trevas e facilitarão o encontro com a Sabedoria
Libertadora. Certas escolas budistas como o Lamaísmo Tibetano desenvolvem
complexas disciplinas mentais destinadas a fazer do instante da morte
física uma preciosa oportunidade para a Libertação
Espiritual. Outras, como a Verdadeira Escola da Terra Pura, preferem criar uma
situação em que já na nossa consciência
ordinária do dia a dia estaremos preparados para enfrentar a morte, sem
necessidade de um treinamento especial visando o instante final. Essa
preparação se faz ouvindo constantemente os ensinamentos
búdicos e refletindo sobre nossas vidas à luz dos mesmos.
CREMAÇÃO OU
INUMAÇÃO?
Os budistas geralmente adotam a
cremação, mas onde ela não é possível ou é muito difícil
devido a entraves burocráticos, não encontram problema algum em
adotar a inumação. É o que acontece com a maioria dos
imigrantes japoneses residentes no Brasil.
DOAÇÃO DE ÓRGÃOS
Em princípio, doar nossos
órgãos para beneficiar nossos semelhantes é um ato de
compaixão e desprendimento bastante meritório, totalmente de acordo com os
princípios da ética budista. Entretanto, os pesadores budistas
japoneses contemporâneos mostram-se algo reticentes diante dos
transplantes, já que essa prática pode dar lugar a um infame
tráfico de órgãos. Países pobres podem se converter
em fornecedores de órgãos para prolongar a vida de cidadãos
ricos do Primeiro Mundo, o que seria uma nova e monstruosa forma de
exploração. Em suma, o Budismo é a favor da vida, mas
não de sua instrumentalização.
SUICÍDIO
O suicídio é um ato de
profundo desespero (e
agressividade) e, por paradoxal que pareça, de profundo apego
egoísta a si mesmo. Não é, de maneira alguma, um ato de
libertação. Dessa forma, deve ser lamentado e desencorajado.
AUTÓPSIA
Nenhuma objeção a
autópsias feitas com objetivos científicos ou para instruir
investigações
criminais. Apegar-se ao corpo físico pe uma forma de liame egoísta
que nos mantém encadeados na condição de exilados. Muito
meritório é o ato de desprendimento e compaixão de doar o
próprio corpo para uma Faculdade de Medicina, visando a
formação dos profissionais da saúde e o progresso da
ciência médica.
EUTANÁSIA
Ninguém pode se arvorar em dono da vida e exercer o
poder de abreviar a existência de outrem, sob pretexto algum. Por outro
lado, também não é correto prolongar indefinidamente e
desnecessariamente, por meios artificiais, a vida (e os sofrimentos) de um
paciente terminal desenganado. Há que deixar a natureza seguir o seu
curso normal, sempre zelando piedosamente para minorar as dores e a
angústia dos enfermos.
ABORTO
Tendo por bases éticas a
não-violência e o respeito à vida, o Budismo não
poderia ser a favor do aborto.
Existem, porém, certos casos (como o da má formação
do feto ou o da gravidez provocada por estupro) em que ele é, de certa
forma, um mal menor. Entretanto, mesmo nesses casos, ele não deve ser
feito irrefletidamente, com o ânimo leve; deve ser acompanhado por uma
séria reflexão sobre o caráter doloroso e
contraditório da condição humana, que nem sempre nos
permite agir em conformidade com o princípio de respeito à
vida.
EMBALSAMAMENTO
Em princípio, nada a opor, e
também, nada a
recomendar. Lembraremos apenas que a opção de embalsamamento pode
resultar de um apego ao corpo físico e que todo o apego egoísta
reforça os laços que nos mantêm encadeados ao mundo das
trevas e do exílio.
RITOS FÚNEBRES
TIBETANOS
No Tibet tradicional, antes da invasão chinesa, os
cultos fúnebres eram bem diferenciados: apenas os corpos dos grandes
lamas eram cremados e consagrados em pequenos santuários denominados
chörten (ou stupa, em sânscrito). Já os corpos das
pessoas comuns eram ofertados aos abutres como alimento, não como
falta de respeito, mas como um derradeiro gesto de generosidade dos falecidos.
Bastante desapegados das coisas materiais, os tibetanos não viam muita
utilidade em guardar cadáveres. Verificado o falecimento, era costume
proceder à leitura de uma manual de educação para a morte
denominado Bardo Thödol (Instruções para a Libertação no Estado Intermediário). Esse livro foi
publicado no Ocidente com o título algo marketeiro de "Livro
Tibetano dos Mortos", que sugere uma relação inexistente com
o "Livro dos Mortos" do antigo Egito.
RITOS FÚNEBRES DA ESCOLA
JÔDO
SHINSHÛ
Falecimento: Verificado o óbito, as velas do
oratório doméstico (butsudan)
serão acesas e o corpo
colocado nas proximidades do mesmo. O rosto do(a) falecido(a) será
coberto com um pano branco. Queimar-se-á incenso continuamente, junto
à cabeceira do(a) falecido(a). Um bonzo será chamado para a
leitura dos sutras (textos sagrados).
Caso o(a) falecido(a) não
tenha sido iniciado no budismo em vida, o bonzo procederá a uma
iniciação póstuma, conferindo ao(a) falecido(a) um novo
nome (Hômyô – nome do dharma ou nome sagrado).
O(a) falecido(a) será em seguida colocado(a) no caixão, com um
rosário budista (nenjû ou jûzu) nas mãos. Durante o velório, os presentes poderão recitar
textos sagrados em coro. Algumas escolas adotam a prática de depor
oferendas de alimento e água junto ao corpo, mas a Tradição
Jôdo
Shinshû não procede dessa maneira.
Um ou vários bonzos serão
chamados para celebrar o rito das despedidas finais antes do corpo ser retirado do local do
velório. Outro ritual será celebrado na capela do
crematório, ou junto ao túmulo, no caso de inumação,
no momento do sepultamento. Poderão então ser apresentadas
oferendas: alimentos vegetais, velas e incenso.
Findo o funeral, o bonzo entregará à
família o ihai (tabuleta votiva)
contendo os nomes (civil e
sagrado) do(a) falecido(a) e a data do óbito. O mesmo será
entronizado no oratório doméstico.
O caixão : Quer no caso de cremação quer
no de inumação, o caixão poderá ser simples ou
luxuoso, conforme a família achar melhor.
Velório: Normalmente se faz com o caixão aberto,
mas não há nenhuma regra. Pode-se enviar coroas de flores, tal
como se faz comumente no Brasil. Oferendas como alimentos deverão ser
colocadas no altar (doméstico ou do templo, conforme o caso), e
não junto ao corpo, perto do qual deverão ficar apenas uma ou
várias celas e um ou vários incensórios cheios de cinza,
para os presentes fazerem suas ofertas de incenso. Textos sagrados
poderão ser entoados em coro, caso a família os
conheça.
Condolências: Devem ser apresentadas, em primeiro lugar,
ao chefe da família ou ao familiar designado para atuar como tal. Segundo
os costumes japoneses, devem ser acompanhadas por um envelope fechado contendo
dinheiro, o qual se destina a ajudar a família nas despesas do
funeral.
Vestimentas: No Extremo Oriente tradicional a cor do luto era a
branco. Hoje, por influência ocidental, no Japão e no Brasil
adota-se a preta. Aquele que participar de velórios e outros ritos
fúnebres budistas deverá, sempre que possível, portar um
rosário budista, comumente vendido nos templos.
Quais
são os enlutados? Quem se sentir nessa
condição.
Quem pode ir
ao cemitério? Qualquer pessoa pode assistir
aos funerais. É aconselhável trazer as crianças, para que
se acostumem com o fenômeno da morte. Trata-se de uma "pedagogia da
morte".
Significado
dos rituais fúnebres: Para a
tradição budista, o importante é cultivar os sentimentos de
gratidão em relação a tudo que devemos a nossos familiares
que se foram, e também, aprender com o morto o que sua
condição nos ensina sobre a impermanência de todas as coisas
e sobre a inevitabilidade da morte – nosso destino comum. Os rituais
fúnebres só são válidos na medida em que eles nos
ajudam a tomar consciência dessas coisas.
OS RITOS DO "ESTÁGIO
INTERMEDIÁRIO"
Segundo a tradição budista,
no dia do falecimento
começa um período de 49 dias denominado "estágio
intermediário" (chûin em japonês, bardo em
tibetano), intervalo entre a morte e um novo nascimento no ciclo das
existências. Durante esse período, a família e os amigos se
reunirão, no lar ou no templo, e um bonzo celebrará os seguintes
ritos:
Rito do 7º
dia;
Rito do Primeiro
Mês;
Rito do 35º
dia;
Rito do 49º dia.
Os ritos serão seguidos por pregações do
Dharma (doutrina budista)
feitas pelo bonzo. No caso de cremação, as
cinzas do(a) falecido(a) poderão ser depositadas no
templo ou no altar doméstico. Atualmente, se difunde a prática
de espalhá-las na terra ou lançá-las à
água, devolvendo-as assim à Natureza.
RITOS COMEMORATIVOS
Generalidades: Por
comemoração entende-se a prática de rememorarmos juntos
nossos mortos queridos. Os ritos de comemoração podem ser gerais
(realizados pelos devotos reunidos em comunidade) ou particulares (restritos aos
familiares e amigos).
Ritos gerais: O principal rito geral é o
Obon, celebração comunitária realizada nos templos,
no dia 15 de julho ou agosto ou em uma data próxima conveniente. As
famílias colaboram ornamentando o templo com lanternas votivas coloridas
dedicadas a seus ancestrais. Na noite de Obon são realizadas pela
comunidade danças folclóricas japonesas (bon-odori), com o objetivo de promover uma
confraternização simbólica entre vivos e mortos.
Ritos particulares: A família
se reunirá no templo ou no lar, convidando um bonzo, para celebrar a
memória do(a) falecido(a), obedecendo ao seguinte calendário
litúrgico:
• Rito do 100º dia;
• Ritos de aniversário de falecimento: 2º, 6º, 12º, 16º, 24 º, 32º, 49º e 99º aniversário.
A partir de então, os ritos comemorativos serão
realizados a cada 50 anos.
Além disso, temos comemorações mensais
(shôtsuki meinichi), no dia do mês em que se deu o
falecimento. Esse dia costuma ser marcado por alguma celebração em
família. Algumas famílias costumam adotar um cardápio
estritamente vegetariano nesse dia, em homenagem ao(a) falecido(a).
MENSAGEM FINAL
Apresentamos, para terminar, um dos textos sagrados da
tradição Jôdo
Shinshû mais lidos nos ritos
fúnebres, a Carta da Ossada Branca (Hakkotsu no Ofumi) do
Mestre Rennyo (1415-1499):
Considerando-se com atenção
a aparência da frágil vida dos homens, vemos quão fugaz
é esse período, em que todas as coisas mundanas são
semelhantes a miragens. Nunca se ouviu falar de alguém que tenha vivido dez mil anos. A
vida flui tão rápida! Quem consegue se manter até a idade
de cem anos? Nem eu, nem ninguém, pode garantir o dia de hoje ou o dia de
amanhã. Dizem que os que hão de morrer e os que já morreram
são mais numerosos dos que os pingos de chuva que já caíram
e do que as gotas de orvalho que ainda cairão. Nosso corpo, que pela
manhã ostenta faces rosadas, ao entardecer pode estar transformado em uma
ossada branca. Quando sopra o vento da impermanência, os dois olhos se
fecham imediatamente, a respiração cessa definitivamente.
Então as faces rosadas irremediavelmente se transformam e o semblante
perde sua beleza comparável à de um pêssego. Os parentes se
reúnem para chorar e lamentar, mas nada disso adianta mais nada. Urge
tomar as providências necessárias, e o corpo, conduzido ao
crematório, desfaz-se em fumaça no meio da noite, restando apenas
a ossada branca. Podemos dizer que é penoso, mas as palavras nem
dão conta de tanta dor. A fragilidade do ser humano nem sequer estabelece
distinção entre velhos e jovens. Assim, todos devem ter em mente a
questão extremamente grave que é a Metavida, confiando
profundamente no Buda Amitabha e recitando o nembutsu (nome do
Buda Amitabha). Salve! Salve!
Oxalá as virtudes decorrentes desta reflexão
sobre as doutrinas e ritos fúnebres possam despertar em todos o anseio de
alcançar o despertar, para que todos alcancem o ir-nascer na Terra da Paz
e da Felicidade!
NAMU AMIDA BUTSU